A mulher-gorila está a chegar. Os homens que se preparem
Em ‘King Kong Fran’, os homens sofrem, mas é tudo por uma boa causa. O espectáculo de Rafaela Azevedo vai estar no Teatro Capitólio, no dia 15, para denunciar os abusos contra as mulheres.
No circo, sempre encontrámos os números mais disparatados ou bizarros. Um deles é o da Monga, ou mulher-gorila, também conhecido como “Girl to Gorilla Illusion”. O número consistia numa mulher em roupa interior, enjaulada, que, aos poucos, se tornava num gorila. Quando esta mudança se dava e as grades da jaula se abriam, as pessoas, assustadas, fugiam para longe e nunca chegavam a ver o que acontecia a seguir. King Kong Fran dá-lhe uma continuação. Fora de tendas e de jaulas que a prendam, uma gorila entra em palco a dançar e a cantar a sua versão de “Toxic”, de Britney Spears, utilizando um dildo como microfone. Mas mais bizarro do que isto, a comparar com os tempos em que se começou a apresentar a mulher-gorila, seria o que vem depois neste King Kong Fran. Falamos de uma mulher que decide inverter os papéis e encarnar a pele de um homem hétero, misógino e sexista. Os seus alvos são, porém, os homens.
Tudo começou quando Rafaela Azevedo se virou para o circo e para a forma como eram representadas as mulheres. Ora uma aberração, sob o olhar atento e intrigado do público, ora como o braço direito fiel de um qualquer mágico, por quem era ordenada para entregar adereços ou então ficar parada em frente a um alvo, enquanto facas voavam na sua direcção. É algo que não acontece só no circo, nota Rafaela, também no entretenimento em geral e na vida. Daí, surge então King Kong Fran, que procura denunciar o machismo, sexismo e misoginia aos quais as mulheres são submetidas ao longo da sua vida. Estreou-se em 2022, no Rio de Janeiro, e agora apresenta-se em Lisboa, no Teatro Capitólio, a 15 de Fevereiro. Antes, no dia 6, passa pelo Porto.
A palhaça Fran
“Para eu me comunicar com esses homens que são muito misóginos, preciso de ser tão binária quanto eles. Então, escolhi incorporar no espectáculo esse homem hétero, misógino, que acredita realmente que é superior às mulheres. Inverto esse papel, boto eles nesse lugar de inferioridade, para ver se dá uma sacudida e se eles vêem o quanto isso é errado”, pretende a criadora, que protagoniza a peça. Não como Rafaela, mas sim como palhaça Fran, personagem que nasceu há dez anos e que tem continuado a evoluir a par com a carreira da artista. À medida que certas questões, problemas ou inquietações surgem na sua vida, Fran está pronta a desconstruí-las em palco.
“Quando comecei com 22, 23 anos, eu tinha outras questões, então a Fran era uma outra palhaça, mas é sempre ela. É como se ela fosse amadurecendo comigo. Agora, estou passando por questões de uma mulher de 33 anos e já passei por muita misoginia, então ela é uma resposta disso. E acredito que, quando chegar aos 40, 50 anos, ela vai ter outra maturidade”, diz. Contudo, para Rafaela, a Fran é mais do que isso, é mais do que um capricho de uma rapariga a passar pelos trinta e que precisa de partilhar aquilo que a aflige. “Na filosofia da palhaçaria, é como se a nossa palhaça fosse nós mesmas, só que com uma lente de aumento em tudo o que é imperfeito e tudo o que é vulnerável. A gente faz humor disso e daí o público se identifica”, continua. É uma forma de se ligar aos outros e pôr o dedo numa ferida colectiva.
Do início ao fim, a ideia de Fran é transmitir uma mensagem que vá além da sala de espectáculos. E para isso mune-se do humor, que considera ser uma arma eficaz para o efeito – “Acho que o humor quebra muita barreira, porque primeiro você ri, depois você entende. A melhor forma de atingir mais gente é pelo humor. Acho que é uma forma de comunicação muito inteligente, porque você consegue falar com quem já concorda com você e com quem discorda.” Desde que se estreou, o público tem vindo a esgotar cada apresentação da peça e as reacções chegam a ser completamente díspares.
Elas sentem-se ouvidas, eles odeiam
Por um lado, as mulheres sentem-se ouvidas e seguras de que não é a sua vulnerabilidade que será dissecada em palco. “No primeiro momento, as mulheres eram muito efusivas. Elas gritavam, as mulheres gritavam ‘mata ele’, no final, sabe? Elas iam nutrindo uma vingança. Depois, acho que se diluiu um pouco”, conta Rafaela. Contudo, e por muito que também hajam muitos homens que vêem a importância da premissa deste trabalho, há outros (provavelmente aqueles sobre os quais Fran fala) que dizem odiar o espectáculo e a própria Rafaela – “Tem os que me odeiam, que querem que eu acabe, que nunca mais faça essa peça. Não querem mais ouvir falar de mim”. Mas a artista não se chateia – “É preciso que essas pessoas existam e que, mesmo me odiando, depois vejam que eu, de forma nenhuma, quero oprimir os homens.”
Afinal, é tudo um jogo. King Kong Fran é tanto um espectáculo de cabaré como de circo, como de repente é um solo de stand-up. A única coisa que todas as cenas têm em comum é o facto de serem dirigidas aos homens e assentarem, em grande parte, na sua objectificação. E nisto o público também tem o seu papel, já que a artista interage com alguns dos homens na plateia, chamando-os ao palco para responderem a perguntas, para servirem de assistentes ou então para protagonizarem um striptease. Sempre com o seu consentimento, claro. “Essa minha escolha de fazer uma peça no teatro serve para mostrar que é um jogo teatral. Eu não desejo que essa violência aconteça com os homens. Pelo contrário, só quero mostrar o quão absurdo é para que parassem de naturalizar com a gente. É realmente uma denúncia, não é um desejo de vingança”, sublinha.
A vingança da mulher-gorila
Contudo, de certa forma é uma vingança. Tal como ela o diz no fim, a peça é a vingança de uma mulher que, aos 18 anos, foi violada. E, por isso, também nasce do ódio e da revolta, porque depois do que passou e do que passa no dia-a-dia, dificilmente partiria de outro lugar. “A palhaça abraça isso, porque eu sinto muita raiva e revolta. E poderia fazer isso na vida, poderia ser uma pessoa vingativa com os homens ou com qualquer figura que expressasse misoginia. Acho que foi uma escolha, até inconsciente, de me expressar ali”, diz Rafaela.
Aqui, falar sobre violência também é “uma forma de defesa” e de deixar de lado a vergonha que as mulheres tendem a sentir quando sofrem algum tipo de violência. “A gente tem vergonha de dizer, porque é como se a gente fosse ficar manchada. Só que o problema não é a gente. E se a gente continua em silêncio, eles têm o aval de continuar violentando.” E no fim, quebrar o silêncio foi uma maneira de Rafaela se libertar e de fazer algo que ela tenta sempre fazer – “a partir da arte, mexer no social”.
Como artista, vê o seu trabalho como mais político do que artístico e espera que o mesmo seja um ponto de partida para que nasçam movimentos de mulheres no humor e no teatro que se centrem nestes temas. “Só uso a arte para poder me comunicar, mas o meu interesse é que todo o mundo abrace essa ideia e que esqueçam de mim se for preciso. Que não pensem ‘isso é a Fran’. Não, isso são as mulheres e as mulheres não querem mais”, remata.
Teatro Capitólio. 15 Fev. Sáb 19.30 e 22.30. 30€