Reavaliando prioridades: a escrita como identidade e não como profissão

Durante os últimos meses, fui obrigado a reavaliar as peças centrais da minha vida. Este duro exame não foi provocado por uma crise, mas pelo seu fim, pelo menos para mim. Durante mais de um ano, a inflação provocou o aumento das prestações e isso obrigou-me a cortar em tudo. Pus a família acima de […]

Jan 26, 2025 - 13:54
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Reavaliando prioridades: a escrita como identidade e não como profissão

Durante os últimos meses, fui obrigado a reavaliar as peças centrais da minha vida. Este duro exame não foi provocado por uma crise, mas pelo seu fim, pelo menos para mim. Durante mais de um ano, a inflação provocou o aumento das prestações e isso obrigou-me a cortar em tudo. Pus a família acima de tudo o resto.

Comecei a pensar, como nunca pensara, em progredir na carreira, de modo a ser melhor remunerado. Verifiquei que nem sequer podia concorrer a posições de Professor Associado porque não tinha artigos ou livros com peer review nos últimos anos. Sempre valorizei mais publicar fora do circuito interno da academia. Escrevi a solo três livros sobre design. Participei em incontáveis conferências, antologias e readers. Sou citado em teses, dissertações, livros e programas educativos. Nada disso serve.

Assim, decidi-me a participar em papers e congressos. Não é um formato para mim. É lento e fechado. São raras as contribuições interessantes. A maioria das pessoas só está lá pelas mesmas razões que eu: cumprir as obrigações de carreira.

Para minha sorte, o empréstimo acabou. Deixei de pagar as prestações. O alívio levou-me a reavaliar as minhas escolhas, e em particular a relação entre a minha escrita no blogue e nas redes sociais com a academia.

Durante muitos anos, fiz essa escrita como se fosse uma profissão. Tinha os meus horários. Escrevia como se trabalhasse num jornal ou numa revista. Houve uma altura em que deixei o ressabiator e criei sites a que chamava revistas online. Acreditava que isso me levaria a ser levado a sério. Primeiro, na possibilidade de escrever para jornais ou revistas. Depois, para o blogue ser levado a sério nos relatórios de avaliação anuais da academia.

Durante o último ano, aconteceu um fenómeno curioso. Desde há dois anos que faço uma narrativa retro-futurista centrada na região do Douro usando imagens geradas por AI. Sempre assumi que era um passatempo. Faço isso durante as férias. Porém, acontece com frequência pararem-me na rua ou nos corredores para me falarem dessas imagens. Comecei a ser convidado para projectos e exposições. Senti um desconforto porque aquilo era realmente um passatempo e não queria profissionalizá-lo.

Aceitei os convites porque eram bons para o currículo e para a carreira. Fiquei com menos vontade de trabalhar nisso nas férias.

Também deixei de escrever em público sobre os assuntos que me interessam — a imagem e a sua relação com o design, a edição — porque preferia guardá-los para papers que precisam de ser inéditos.

Tudo isso me andava a corroer. Cheguei a pensar em deixar de escrever excepto o número mínimo de papers anuais possível. Arranjava uma horta. Lia. Passeava.

Ainda assim, estava numa posição privilegiada. Há profissões cuja obrigação de dedicação é total. No jornalismo, é frequente a proibição contratual de publicar nas redes sociais, de escrever ou postar fotos. Posso ter actividades extra-academia. E até posso colocá-las nas avaliações porque tenho a sorte dos meus passatempos serem em áreas centrais do design. O problema é que são sempre aceites apenas por equivalência. Tudo o que escrevo num ano não chega bem a contar como um único paper ou comunicação, por mais que os profissionalize na forma ou no conteúdo.

Então, fez-se luz.

Deixarei de encarar aquilo que escrevo como uma profissão. Tenho uma profissão que é dar aulas, mas tenho uma identidade e um percurso que não se reduz a isso. Não é um “passatempo”, nem uma actividade “extra-curricular”. É-me central.

Profissionalizá-la só a tem corroído. Faço-a por uma necessidade urgente. Penso melhor em público. Não posso estar à espera de quando me pagam ou de quando há um congresso com um tema compatível. Portanto, sou generoso porque é crucial à necessidade imperativa que me leva a publicar.

O que faço não é menos do que uma profissão ou uma carreira. É mais. Sei que nunca serei Professor Associado. Paciência. Escreverei o mínimo de papers possível. Vou seguir o conselho de Paul Krugman: o paper só se publica depois do seu assunto ter sido discutido muito em público; o paper é onde se encerra o percurso de uma ideia e não o seu começo.

Nunca mais andarei a pedinchar dinheiro à DgArtes ou a quem quer que seja. Se alguém vir o meu trabalho, gostar e me convidar para um desses projectos, estou aberto. Mas o meu imperativo não é preencher candidaturas.

A minha vocação é simples, barata, e tem um alcance inegável. No limite, só preciso de um computador com ligação à net e um processador de texto. Tudo o resto é bónus ou gatekeeping.