Catarina e a beleza de matar fascistas
Acabei hoje “Catarina e a beleza de matar fascistas”, de Tiago Rodrigues. A peça vem acompanhada de um longo posfácio de Gonçalo Frota, uma espécie de “making of” que ocupa quase metade do livro. Em termos ostensivos, trata da impotência da esquerda perante o discurso actual da extrema-direita. De modo menos imediato, tem detalhes preocupantes. […]
Acabei hoje “Catarina e a beleza de matar fascistas”, de Tiago Rodrigues. A peça vem acompanhada de um longo posfácio de Gonçalo Frota, uma espécie de “making of” que ocupa quase metade do livro.
Em termos ostensivos, trata da impotência da esquerda perante o discurso actual da extrema-direita. De modo menos imediato, tem detalhes preocupantes. Gonçalo Frota diz que trata o modo como a esquerda e a democracia se autodestroem por discutirem, enquanto o fascismo tem certezas. Porém, não me parece verdadeiramente uma peça sobre discutir — até porque assume a forma de uma tragédia. A discussão é apenas um dispositivo pelo qual se cumpre a autodestruição dos protagonistas. O fim vem anunciado.
A discussão está presente porque faz parte da iconografia da esquerda, tal como Catarina Eufémia, o Alentejo, os chaparros, a canção de protesto. A peça é sobre imagens de esquerda e entre essas imagens está aquilo que Nanni Moretti descrevia como “dizer alguma coisa de esquerda” — que é só mais outra imagem para a esquerda mostrar que é esquerda.
E as imagens da peça são peculiares: Catarina Eufémia como mito fundador, a matança de fascistas em familia equiparada a um ritual de matança do porco, uma ideia de esquerda que está no sangue e na família, finalmente a beleza de matar apresentada logo no título.
A mitologia, a tradição, a família, o sangue, a beleza de matar — tudo isso se aproxima muito da cultura de direita. É uma peça onde, ironicamente, as imagens da esquerda, embatem contra as palavras de direita — o fascista que se matar ritualmente é um escritor de discursos.
Trata-se de uma curiosa inversão. Furio Jesi (citado por António Guerreiro) falava da cultura de direita:
«como aquela que tem como modelo uma “máquina mitológica”, um dispositivo que fabrica mitologemas, narrativas sobre o passado, fazendo dele “uma amálgama que se pode modelar”. É — diz Jesi recorrendo a Oswald Spengler — a linguagem das ideias sem palavras (Spengler: “A única coisa que permite a solidez do futuro é aquela herança dos nossos pais que temos no sangue: ideias sem palavras”).»
O problema da esquerda não é o excesso de discussão, mas a discussão ter-se tornado um ícone no meio de outros tantos, e da esquerda se ter tornado numa máquina de gestão de mitos onde se encerrou e onde as palavras perderam qualquer sentido para além do ritual.
Na verdade, já não tenho paciência para a iconografia tradicional e tradicionalista de esquerda.