Vamos ver*

É difícil, senão impossível, gostar de Trump. O seu vocabulário não será constituído por mais de 100 palavras, de história dos EUA deve conhecer uma versão de bolso lida a correr e da universal é seguro que nunca ouviu falar dos Sumérios, suporá talvez que o grande contributo grego para a civilização foi a Maria Callas, que Roma era lá aquela coisa dos gladiadores e que o Reino Unido só é unido porque andaram à batatada com os Escoceses. Duvida-se que tenha lido mais de 3 livros, um de contabilidade, outro sobre empresas de sucesso e o terceiro, na juventude, As Aventuras de Huckleberry Finn, que recorda com saudade. Não tem uma carreira política, salvo a campanha e a presidência que ganhou anteriormente. Mas foi eleito e, da segunda vez, depois de durante quatro anos ter sido perseguido tenazmente pelo establishment político, a maioria da comunicação social local e a quase totalidade da estrangeira, com acusações de lana caprina que eram apresentadas com estrondo como se se tratasse de gravíssimas falhas de lisura e comportamento. O crivo na América é muito mais apertado do que na Europa, as preocupações com sexo e intimidade quase doentias e o poder judicial (como, crescentemente, em todo o lado) ansioso por jogar o jogo da política sem a maçada de depender dos eleitores. Esse o caldo que teve de entornar. Ganhou por ter teimosia, coragem e dinheiro, não obstante do outro lado haver ainda mais dinheiro e a tenacidade difusa do sistema ofendido. Aquilo é, porém, para o bem e para o mal, a terra dos vencedores. E, por isso, na sua inauguração tinha personagens como Zuckerberg, que há dias veio confessar cândidamente que sim senhor praticou censura em nome do combate ao discurso de ódio e às fake news, a mando do Governo, mas que agora se encontrava rendido aos encantos da livre expressão da opinião. Tem lições, esta vitória. A primeira é que a condição de intelectual não recomenda ninguém para mais do que dar umas aulas na universidade, escrever uns artigos e talvez uns livros, mas não para poderes executivos. Precisamos dos artigos, dos livros e dos professores porque são as ideias que comandam o mundo, mas, num regime democrático, é preciso conquistar os eleitores e estes tendem com frequência a pensarem pela própria cabeça – que se danem os pastores ideológicos do rebanho. A primeira lição é assim que a vitória de Trump é a vitória da democracia: jornalistas, comentadores, empresários, magistrados da opinião, acham que devemos ir por aqui? Pois nós vamos por ali. A segunda é que as explicações sábias que atribuem a derrota de Biden à inflação são interesseiras: o que Trump defendeu na campanha, e que põe os cabelos em pé ao bem-pensismo de lá e de cá, é muito mais do que a economia. E mesmo que não tivesse havido um surto inflacionista e Trump tivesse perdido, sempre ficaria esta vaga de fundo de reacção ao mundo que tem vindo a ser construído no Ocidente, feito de delegação de poderes em burocracias internacionais, desprezo pela tradição, fiscalização do discurso e engenharia social em matéria de relações entre sexos, etnias e nacionalidades. O que os eleitores disseram, como já tinham dito húngaros, italianos, checos e muitos outros – e ainda a procissão vai no adro – foi: basta. Fosse Trump o intelectual que não é e já estaria a meter no seu modelo de raciocínio tantas variáveis que o resultado seria a paralisia. Mas não: é grande a saraivada de decretos logo nos primeiros dias, ao serviço da ideia peregrina de cumprir promessas eleitorais, coisa que um político mais experimentado nunca faria. E é bom olhar para alguns desses diplomas para perceber por que razão não são apenas deploráveis que lhe compram o discurso mas também essa turba indistinta ou ultra-minoritária que pulula nas redes e aqui neste jornal, ocasionalmente, e que o aprova. Começa por uma quantidade de medidas para estancar, e reverter, a imigração. Não é provável que a retórica maximalista de Trump seja exequível (deportar milhões), nem que que inúmeros pequenos negócios possam sobreviver sem imigrantes, nem que muitas profissões (de serviço doméstico, por exemplo) os possam dispensar. E também a negação da nacionalidade americana a quem nasça no território chocará com a emenda à Constituição que a garante. Mas a mensagem que ficará não é o processo, que não atingirá o objectivo, é a ideia de que a América e os seus valores não são para substituir, a prazo, por tradições e valores alheios. Uma ideia que, na Europa e para muitos países, tem crescentes compradores. Ainda bem. Na economia, uma saraivada de decretos corta regulamentações sortidas que encarecem bens e serviços, com isso se pretendendo combater a inflação. Será talvez oportuno lembrar que sempre que um governo, com as melhores intenções, cria uma burocracia para combater um flagelo ou um percebido abuso qualquer, essa burocracia não vai nunca ser objecto de qualquer análise custo/benefício e tenderá a crescer em importância e intervencionismo – tornar-se-á uma pedra oculta

Jan 26, 2025 - 18:43
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Vamos ver*

É difícil, senão impossível, gostar de Trump. O seu vocabulário não será constituído por mais de 100 palavras, de história dos EUA deve conhecer uma versão de bolso lida a correr e da universal é seguro que nunca ouviu falar dos Sumérios, suporá talvez que o grande contributo grego para a civilização foi a Maria Callas, que Roma era lá aquela coisa dos gladiadores e que o Reino Unido só é unido porque andaram à batatada com os Escoceses.

Duvida-se que tenha lido mais de 3 livros, um de contabilidade, outro sobre empresas de sucesso e o terceiro, na juventude, As Aventuras de Huckleberry Finn, que recorda com saudade.

Não tem uma carreira política, salvo a campanha e a presidência que ganhou anteriormente. Mas foi eleito e, da segunda vez, depois de durante quatro anos ter sido perseguido tenazmente pelo establishment político, a maioria da comunicação social local e a quase totalidade da estrangeira, com acusações de lana caprina que eram apresentadas com estrondo como se se tratasse de gravíssimas falhas de lisura e comportamento. O crivo na América é muito mais apertado do que na Europa, as preocupações com sexo e intimidade quase doentias e o poder judicial (como, crescentemente, em todo o lado) ansioso por jogar o jogo da política sem a maçada de depender dos eleitores. Esse o caldo que teve de entornar.

Ganhou por ter teimosia, coragem e dinheiro, não obstante do outro lado haver ainda mais dinheiro e a tenacidade difusa do sistema ofendido. Aquilo é, porém, para o bem e para o mal, a terra dos vencedores. E, por isso, na sua inauguração tinha personagens como Zuckerberg, que há dias veio confessar cândidamente que sim senhor praticou censura em nome do combate ao discurso de ódio e às fake news, a mando do Governo, mas que agora se encontrava rendido aos encantos da livre expressão da opinião.

Tem lições, esta vitória. A primeira é que a condição de intelectual não recomenda ninguém para mais do que dar umas aulas na universidade, escrever uns artigos e talvez uns livros, mas não para poderes executivos. Precisamos dos artigos, dos livros e dos professores porque são as ideias que comandam o mundo, mas, num regime democrático, é preciso conquistar os eleitores e estes tendem com frequência a pensarem pela própria cabeça – que se danem os pastores ideológicos do rebanho. A primeira lição é assim que a vitória de Trump é a vitória da democracia: jornalistas, comentadores, empresários, magistrados da opinião, acham que devemos ir por aqui? Pois nós vamos por ali.

A segunda é que as explicações sábias que atribuem a derrota de Biden à inflação são interesseiras: o que Trump defendeu na campanha, e que põe os cabelos em pé ao bem-pensismo de lá e de cá, é muito mais do que a economia. E mesmo que não tivesse havido um surto inflacionista e Trump tivesse perdido, sempre ficaria esta vaga de fundo de reacção ao mundo que tem vindo a ser construído no Ocidente, feito de delegação de poderes em burocracias internacionais, desprezo pela tradição, fiscalização do discurso e engenharia social em matéria de relações entre sexos, etnias e nacionalidades. O que os eleitores disseram, como já tinham dito húngaros, italianos, checos e muitos outros – e ainda a procissão vai no adro – foi: basta.

Fosse Trump o intelectual que não é e já estaria a meter no seu modelo de raciocínio tantas variáveis que o resultado seria a paralisia. Mas não: é grande a saraivada de decretos logo nos primeiros dias, ao serviço da ideia peregrina de cumprir promessas eleitorais, coisa que um político mais experimentado nunca faria. E é bom olhar para alguns desses diplomas para perceber por que razão não são apenas deploráveis que lhe compram o discurso mas também essa turba indistinta ou ultra-minoritária que pulula nas redes e aqui neste jornal, ocasionalmente, e que o aprova.

Começa por uma quantidade de medidas para estancar, e reverter, a imigração. Não é provável que a retórica maximalista de Trump seja exequível (deportar milhões), nem que que inúmeros pequenos negócios possam sobreviver sem imigrantes, nem que muitas profissões (de serviço doméstico, por exemplo) os possam dispensar. E também a negação da nacionalidade americana a quem nasça no território chocará com a emenda à Constituição que a garante. Mas a mensagem que ficará não é o processo, que não atingirá o objectivo, é a ideia de que a América e os seus valores não são para substituir, a prazo, por tradições e valores alheios. Uma ideia que, na Europa e para muitos países, tem crescentes compradores. Ainda bem.

Na economia, uma saraivada de decretos corta regulamentações sortidas que encarecem bens e serviços, com isso se pretendendo combater a inflação. Será talvez oportuno lembrar que sempre que um governo, com as melhores intenções, cria uma burocracia para combater um flagelo ou um percebido abuso qualquer, essa burocracia não vai nunca ser objecto de qualquer análise custo/benefício e tenderá a crescer em importância e intervencionismo – tornar-se-á uma pedra oculta dependurada ao pescoço da economia sã. Por muito que Musk e os outros engenheiros das amputações façam ficarão aquém do necessário. Teremos muito a aprender? Imenso.

As tiradas trumpianas sobre taxas à importação de produtos provocam na generalidade dos economistas, lá e cá, urticária, por entenderem que isso provocará um aumento de preços de bens, portanto alimentando a inflação, além de outras consequências negativas como sejam a travagem do crescimento económico por má alocação de recursos, e o espoletar de uma guerra comercial com a qual ninguém ganhará. O que o outro lado pia quase não se ouve, por ser silenciado, mas é que as taxas serão diferenciadas para prevenir aqueles efeitos e a valorização da moeda combaterá o aumento de preço nas importações. Mesmo achando que uma das condições para realmente entender a economia é não ser economista, inclino-me neste caso a achar que os riscos são grandes.

A América vai sair da Organização Mundial de Saúde e retirar-se do Acordo de Paris, uau. A retórica mundialista vende que aquela organização existe para se ocupar, em nome da ciência, da saúde universal, e que o Acordo garante que não vamos morrer todos assados (a Terra, segundo o engº Guterres, já está em ebulição, e talvez por isso se tivesse feito fotografar dentro de água fresca vestido de fato) ou afogados.

A OMS é na realidade um organismo suspeito de demasiado permeável à influência chinesa. E sofre do mesmo vício de que padece a ONU, isto é, uma maioria pouco salubre decide o que todos os países devem fazer, sob as ordens de um czar que executa as deliberações. E quanto ao Acordo fossem as alterações climáticas apenas uma tese de que a comunicação social se ocupava dando voz aos especialistas que as veem assim e aos que as veem assado e não teriam talvez nascido tantos estudos, tantas agências, tantos interesses, tantos voluntarismos e tantas decisões lesivas para a economia para sossegar a multidão que acredita em profecias apocalípticas.

Longe vai o tempo em que a imprensa, nos países democráticos, era um contrapoder. O advento da internet e das redes pô-la de joelhos porque nem nas notícias nem nas opiniões continuou a ter o monopólio – a concorrência faz de graça. Daí que tivesse fugido para os braços do Poder, criando um conúbio doentio que faz com que, no aquecimento global e no mais, o ponto de vista veiculado nunca seja o do negacionista, por muito albardado que este esteja de diplomas, como frequentemente está.

Drill, baby, drill, disse Trump, gelando de pavor meio mundo no Ocidente, enquanto o outro meio suspirava de alívio. Já era tempo. E retirou a subsidiação à compra de veículos eléctricos, baseado na ideia de deixar funcionar o mercado – um completo absurdo, já se vê. (Um pormenor curioso sobre esta medida é que se dizia que não a iria tomar porque isso prejudicaria a Tesla, logo Elon Musk. Agora diz-se que o vai beneficiar porque a Tesla já está em lucro e a concorrência não, de modo que leva vantagem porque as outras marcas vão sufocar).

Talvez o decreto de maior relevo seja o que proíbe às agências federais a restrição da livre expressão da opinião dos Americanos, seja sob que pretexto for. Vamos ter então as mesmas opiniões erróneas, e as mesmas crenças absurdas, e falsidades, e desinformações, e todas as demais liberdades que se permitem as pessoas quando podem falar sem freio; e vamos ter no embrulho coisas que ignorávamos e opiniões silenciadas que vale a pena ouvir. Todavia, não vamos ter mandarins oficiais da opinião a decidir o que pode ser dito, lido e ouvido. Há quem ache que ficamos pior.

Há mais, muito mais, como o fim de programas federais que incluem preferências baseadas na raça, no sexo ou quaisquer outras características imutáveis, ou que estabelecem discriminações baseadas em exigências de diversidade, “equidade” e inclusão. E, neste ponto, conclui Trump, revolucionariamente, que doravante será política oficial do governo dos Estados Unidos que há apenas dois géneros – masculino e feminino.

Vai correr bem? Estamos tão habituados a que a direita, quando chega ao poder, faça uns retoques no estado de coisas que herdou, deixando-o praticamente intocado para que a esquerda, quando regresse, prossiga o caminho que faz com que a Europa, hoje, seja uma sombra de si mesma, que nos parece que o futuro tem de ser uma variante, com mais ou menos molho, do passado. Seria bom que corresse.

* Publicado no Observador