Um gole com Manu Chao
“Meu instrutor de boxe mora em BH”, contou Manu Chao para um punhado de fãs nos fundos do Kingston Club, um quiosque à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, Zona Sul do Rio de Janeiro. Era a segunda das três apresentações na cidade de seu show “ultra acústico”, em dezembro, para um público de pouco mais de quatrocentas pessoas – os ingressos esgotaram em minutos. Com um copo de cachaça nas mãos, o artista recusou um baseado que lhe foi entregue. “Quando bebo, não fumo”, explicou ele. Em seguida, ofereceu um gole do seu copo para as poucas pessoas que o rodeavam e prosseguiu com a história sobre o instrutor. Na década de 1980, os dois faziam parte de um grupo de amigos que planejava viajar pelos Estados Unidos e México. “Mas eu amarelei”, disse o artista. The post Um gole com Manu Chao first appeared on revista piauí.
“Meu instrutor de boxe mora em BH”, contou Manu Chao para um punhado de fãs nos fundos do Kingston Club, um quiosque à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, Zona Sul do Rio de Janeiro. Era a segunda das três apresentações na cidade de seu show “ultra acústico”, em dezembro, para um público de pouco mais de quatrocentas pessoas – os ingressos esgotaram em minutos.
Com um copo de cachaça nas mãos, o artista recusou um baseado que lhe foi entregue. “Quando bebo, não fumo”, explicou ele. Em seguida, ofereceu um gole do seu copo para as poucas pessoas que o rodeavam e prosseguiu com a história sobre o instrutor. Na década de 1980, os dois faziam parte de um grupo de amigos que planejava viajar pelos Estados Unidos e México. “Mas eu amarelei”, disse o artista.
O grupo fez a tal viagem e um deles, Paco Pigalle, instalou-se no Brasil e abriu um bar, atualmente fechado, em Belo Horizonte – antes do Rio, também em dezembro passado, Manu Chao fez dois shows na capital mineira e Pigalle ficou responsável pela produção dos espetáculos que, assim como no Rio, foram para poucas pessoas.
Durante o relato, perguntei a Manu Chao se ele aceitava conceder uma entrevista à piauí. O pedido foi recusado, coerente com o histórico de alguém que construiu uma trajetória apartada da mídia. Ainda assim, disse que “poderíamos conversar”.
A história contada nos fundos do bar carioca não é só uma curiosidade sobre seu amigo e a vida dele na cidade mineira. Manu Chao explicou que preferiu ficar na França pois estava formando uma banda com o irmão, Antoine Chao, o Tonio, e outros seis conterrâneos parisienses, alguns também descendentes de imigrantes como eles (filhos de mãe basca e pai galego).
Aparentemente banal, a decisão ajudou a formar o Mano Negra, grupo ativo entre 1987 e 1994, que lançou quatro álbuns pela gravadora Virgin (um braço da Universal Music) e conquistou fãs ao redor do mundo, sobretudo hispanohablantes, com músicas cantadas em espanhol, francês, inglês e árabe. As composições recebiam melodias oriundas da fusão do punk rock e do rockabilly (fusão do rock com o R&B e o country) com influências ciganas e espanholas.
Do primeiro álbum, Patchanka, um neologismo de patchwork (colcha de retalhos, uma estética comum ao punk) com Pachanga (festa ou bagunça no espanhol caribenho), ao último, Casa Babylon, a formação criou um repertório com referências caribenhas, africanas e latino-americanas. A mistura de batidas eletrônicas e samples (trechos de gravações sonoras) se tornaram marca registrada na carreira de Manu Chao.
Com o Mano Negra, o compositor fez a tal viagem pela América Latina adiada anos antes. No documentário Pura Vida (2005), que narra a história da banda, seu irmão Tonio afirma que chegar em Lima pela primeira vez, em 1989, era a possibilidade de “finalmente ver as famosas veias abertas da América Latina”, em alusão ao livro do uruguaio Eduardo Galeano.
Em 1992, com a turnê de lançamento do álbum King of Bongo, a banda, acompanhada da trupe de teatro francesa Royal de Luxe, utilizou um navio customizado com equipamento suficiente para realizar apresentações a bordo e em solo. Em cinco meses, passaram por Caracas, Cartagena das Índias (onde receberam a visita do escritor Gabriel García Márquez), Bogotá, Cidade do México, Havana, Quito, entre outras cidades.
No Brasil, estiveram em Salvador, Fortaleza, Belo Horizonte, São Paulo, Santos, Brasília e Rio de Janeiro, onde fizeram dois shows ao lado dos Arcos da Lapa e em frente ao palco principal da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco-92. Uma das datas contou com a participação do ícone punk californiano Jello Biafra, ex-vocalista do Dead Kennedys. O produtor Kassin recorda o evento: “Primeiro aconteceu uma peça do Royal de Luxe, um cenário muito louco que ia montando como se fossem páginas de um livro. Era um negócio muito interessante, bem feito e contemporâneo. Depois aconteceu o show do Mano Negra que era em cima de um caminhão. Foi um dos grandes shows que vi na minha vida”, disse à piauí.
Após o término do grupo, em 1994, Manu Chao seguiu carreira solo. Continuou viajando pela América Latina, morou em várias cidades, dentre elas o Rio de Janeiro e, a partir dessa experiência, lançou Clandestino (1998). É um trabalho atravessado pela ideia de um ser errante em um mundo cheio de muros, de Ceuta à Gibraltar, de Tijuana a San Diego, e que não consegue (ou não quer) se fixar em canto nenhum.
Esse estilo de vida e de repertório vai nortear o repertório do artista em seus quatro discos posteriores, até Viva Tu, o mais recente, de novembro do ano passado, após um hiato de dezessete anos. O trabalho foi produzido pela Because Music, gravadora que abriga seus projetos desde 2005, quando rompeu com a Virgin. A Because pertence ao executivo Emmanuel de Buretel, seu antigo chefe no braço francês da Virgin.
Na atual turnê, contrariando a tendência de grandes medalhões da música que saem do ostracismo para megashows de “reunião” ou “despedida”, Manu Chao se aventurou num formato acústico. A ideia original era que ele ficaria sozinho no palco, cantando e tocando um violão e o bumbo, tal qual um músico de rua. Os primeiros ensaios, no entanto, não deram certo.
Ele, então, convidou o músico argentino Matias Giliberto, o Matumati, de 33 anos, seu vizinho em Barcelona, onde mantém residência em parte do ano, para ajudá-lo a encontrar uma solução. Após alguns testes, decidiu incorporar o parceiro, que toca um segundo violão nos shows.
A opção por realizar apresentações intimistas e em lugares menores não é falta de público. Além dos 9,4 milhões de ouvintes mensais no Spotify, o cantor tem um histórico de exibições grandiosas – em março de 2006, cantou para 150 mil pessoas na Plaza de la Constitución, no El Zócalo, na Cidade do México. Ele não descarta voltar aos palcos imponentes, mas faz uma ressalva. “Não tenho problema em fazer shows em lugares grandes. Só não gosto dos donos desses lugares.”
A performance no Rio de Janeiro começou com Vecino en el Mar, primeira faixa de Viva Tu. Com duas horas de duração, o espetáculo é mais ou menos dividido em três atos: o primeiro está focado no trabalho mais recente. No segundo e no terceiro ato, o cantor emenda seus principais hits, como Me Gustas Tu e Clandestino. Em La Vida Tombola, uma homenagem ao argentino Diego Maradona, o compositor saudou o botafoguense Garrincha. Durante o instrumental de Mala Vida, um dos primeiros sucessos do Mano Negra, o artista rege o público até manter o controle absoluto da plateia. São momentos que parecem improvisados, mas que se repetiram com precisão nas três apresentações cariocas.
A vertente política também se faz presente. Ele cantou Huelga de Amores, do grupo de rock argentino Divididos, uma crítica à ocupação católica da América Latina inspirada na obra de Eduardo Galeano. Frases como Palestina Libre! e Estamos vivos! foram gritadas em vários momentos. Inexistentes na versão original, os versos argentino ilegal e boliviano ilegal complementaram o hit Clandestino. A noite termina com outro sucesso, Minha Galera, cujos versos do refrão dizem: Oh minha maconha/ minha torcida/ minha querida/ minha galera.
Manu Chao tem um estilo de vida recluso e, apesar da fama que ostenta, prefere não ser reconhecido como um artista renomado. Após a primeira noite de apresentações no Rio, bebeu um copo de Fernet com Coca-Cola e tirou foto com alguns espectadores. Nas outras duas apresentações, preferiu fugir do assédio dos fãs utilizando uma blusa com capuz.
Quem o acompanha há mais tempo sabe que a técnica é conhecida. Em 2005, após um show junto à Usina do Gasômetro durante o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, o francês adotou o mesmo capuz para circular incólume pelo Acampamento da Juventude e curtir uma festa, a Tarja Preta Sound System, com os DJs Juca e Castro. Ao ser reconhecido por um dos presentes, saiu correndo. Lembramos e rimos do ocorrido daquele dia.
Antes do Rio, Manu Chao tocou em São Paulo para 1.200 pessoas no City Lights Music Hall, uma casa de shows no bairro de Pinheiros, e depois foi para Belo Horizonte. Após o Rio, avisou que seguiria para o Ceará. Não tinha compromissos oficiais, só queria vagar de cidadezinha em cidadezinha. “Canoa Quebrada?” perguntou um amigo. “Lá já era! Tem lugares muito melhores”, respondeu o francês, em tom de mistério. Em seu perfil no Instagram, com 922 mil seguidores, ele publicou um vídeo tocando em um boteco na cidade de Paracuru, onde mora seu filho, Kirá, de 26 anos. O jovem também é músico.
“Os shows com equipamento são os ‘oficiais’. As cantaroladas nos bares são moeda corrente que saem no momento, compartilhando com as pessoas” conta Matumati à piauí. Nos falamos por mensagem em meados de janeiro, quando eles já haviam passado pelo Ceará e estavam na Bahia para encerrar a turnê que teve dezessete exibições. “Os momentos mais mágicos [da turnê] são conhecer paisagens novas, a Mata Atlântica na Bahia, uma cachoeira em Serra Grande [no Sul da Bahia], contemplar uma paisagem que não cabe nos olhos e olhar quem está ao seu lado. E rir, pois não há nada a falar.”
Na capital baiana, Manu Chao participou da Lavagem do Bonfim, tradicional festejo em homenagem ao senhor do Bonfim, e se apresentou no Largo da Tieta, no Pelourinho. Depois, seguiu para Lisboa, onde fez dois shows no fim de janeiro e início deste mês. No Rio, entre um gole e outro, avisou que seguiria para a Índia, onde ficará até meados de março. A turnê pela Ásia, segundo Matumati, deve durar até abril, mas nada está confirmado. Em se tratando de Manu Chao, o estranho seria saber com exatidão seus próximos passos. Como ele mesmo diz na canção Giramundo em um perfeito portunhol: Yo tenho jeito de viajeiro/ Yo tenho jeito giramundo/ Yo no soy de ningún lugar.
The post Um gole com Manu Chao first appeared on revista piauí.