Um burro chamado Joachim Raphaël Boronali

A ideia surgiu em Paris em Março de 1910. A capital francesa, que foi também a capital do século XIX, ainda vivia a centralidade cultural que viria a perder nas décadas seguintes. A lista de artistas, intelectuais e inventores que por ali se estabeleceram nesses anos é extensa e toca em inúmeras áreas da ciência, da cultura e da arte.  Os antigos muros que limitavam Paris, serviam principalmente para que todos os bens que entrassem na cidade fossem taxados. Na proximidade do actual Boulevard de Clichy, ficava um desses pontos de cobrança e isso queria dizer que o vinho era mais barato do lado de fora da fronteira. Essa é uma das explicações para que ali confluísse o tipo de público que explica que o bairro de Montmartre se tenha tornado num dos epicentros da vida nocturna e boémia da capital francesa. Os seus cabarés, cafés, vielas apertadas, ruas esconsas e inclinadas são as imagens de marca daquela zona de Paris.  Outra particularidade de Montmatre tem a ver com a tua topografia elevada, tendo no seu topo o Santuário do Sacré-Cœur, de onde se tem um vista que alcança a maior parte da cidade. Foi a topografia que justificou que ali existissem moinhos onde os cereais eram moídos antes de passarem pela fiscalidade para depois entrarem em Paris. O herdeiro mais conhecido desta tradição, pese embora ter mudado de tipo de actividade, será o Moulin Rouge que é também um dos poucos que ainda sobrevive. Menos conhecido, mas igualmente digno de relevo é o Moinho da La Galette, que inspirou Renoir no seu quadro que retrata o ambiente de baile da época, mas também Van Gogh e muitos outros. Encontramos outra referência mais recente aos moinhos de Montmartre, num dos meus filmes favoritos O Fabuloso destino de Amélie Poulain. Fica a poucos passos do Boulevard de Clichy o Café des Deux Moulins, onde a fabulosa Amélie trabalhava.  Rua a rua, quase que passada a passada, as histórias ali não têm fim, ora sejam os ateliers de pintura com os seus janelões virados a norte para assim conseguir uma luz mais regular, ora a residência e estátua de Dalida a cantora, que adoptou Montmartre e que foi igualmente adoptada por Montmartre, é também ali que se encontra a estátua que retrata Dutilleul a personagem do conto Le Passe-muraille, sem esquecer o jardim no local onde Saint-Dennis, o primeiro bispo de Paris, que por causa da sua fé foi decapitado e que, transportando na mãos a sua cabeça, terá parado na sua última caminhada de cerca de seis quilómetros até ao local onde fica agora a Basílica erigida em sua memória.  Mas, como dizia no início, a ideia surgiu em Março de 1910. A robustez financeira de quem fazia vida por Montmartre definia os locais frequentados. A irreverência boémia e os bolsos pouco abonados empurravam os marginais para os locais menos recomendáveis. O cabaré onde se passa esta história já tinha muitos anos e já tinha conhecido vários nomes. O mais antigo era o Au rendez-vous des voleurs, e se tivesse conservado esse nome, teria certamente merecido visitas regulares do nosso ex-governante que se mudou para a capital francesa, e não me estou a referir a Afonso Costa. Mas, adiante. Segundo as memórias da cidade, certa noite alguns bandidos que entraram como normais clientes, só saíram depois de terem assassinado o filho do proprietário. O trágico acontecimento foi divulgado pelos jornais e o novo proprietário, explorando o filão de notoriedade, mudou o seu nome para Le Cabaret des Assassins. O nome seguinte do referido estabelecimento, e que perdura até a actualidade, surgiu após uma pintura mural feita pelo caricaturista Andre Gill, onde um coelho é representado a fugir a uma caçarola. O que teria sido no início Le Lapin à Gill evoluiu para Le Lapin Àgile e depois para Cabaret Au Lapin Agile.  Artistas falidos, o que é quase uma redundância, ali parodiavam sobre as tendências da arte, mais especificamente da pintura. Era o impressionismo que dava cartas mas, imaginaram eles, importava dar o passo seguinte. E foi assim que numa noite mais bebida, alguém se terá lembrado de fazer uma partida aos entendidos em arte. Recorrendo aos préstimos de Lolo, o jumento que pertencia ao dono do cabaré, foi pintada uma tela. Em vez de usarem pincéis, recorreram à cauda do Lolo, que este agitava de cada vez que lhe davam mais uma cenoura. E este foi o resultado.  O título escolhido para o quadro foi Et le soleil s'endormit sur l'Adriatique. O nome artístico do autor era Joachim-Raphaël Boronali, supostamente um italiano desconhecido que pintava segundo o estilo “excessivista”, algo que nunca ninguém tinha ouvido falar, mas que os foliões se encarregaram de descrever num extenso manifesto. Importa referir que a execução da obra foi testemunhada por um notário que assim pode documentar todo o processo. A reacção não se fez esperar. Houve quem criticasse a nova corrente artística, mas também quem se entusiasmasse e não hesitasse em afirmar que se tratava de “uma maravilha da arte expressionista”. A revelação do que estava por de

Jan 31, 2025 - 16:19
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Um burro chamado Joachim Raphaël Boronali

A ideia surgiu em Paris em Março de 1910. A capital francesa, que foi também a capital do século XIX, ainda vivia a centralidade cultural que viria a perder nas décadas seguintes. A lista de artistas, intelectuais e inventores que por ali se estabeleceram nesses anos é extensa e toca em inúmeras áreas da ciência, da cultura e da arte. 

Os antigos muros que limitavam Paris, serviam principalmente para que todos os bens que entrassem na cidade fossem taxados. Na proximidade do actual Boulevard de Clichy, ficava um desses pontos de cobrança e isso queria dizer que o vinho era mais barato do lado de fora da fronteira. Essa é uma das explicações para que ali confluísse o tipo de público que explica que o bairro de Montmartre se tenha tornado num dos epicentros da vida nocturna e boémia da capital francesa. Os seus cabarés, cafés, vielas apertadas, ruas esconsas e inclinadas são as imagens de marca daquela zona de Paris. 

Outra particularidade de Montmatre tem a ver com a tua topografia elevada, tendo no seu topo o Santuário do Sacré-Cœur, de onde se tem um vista que alcança a maior parte da cidade. Foi a topografia que justificou que ali existissem moinhos onde os cereais eram moídos antes de passarem pela fiscalidade para depois entrarem em Paris. O herdeiro mais conhecido desta tradição, pese embora ter mudado de tipo de actividade, será o Moulin Rouge que é também um dos poucos que ainda sobrevive. Menos conhecido, mas igualmente digno de relevo é o Moinho da La Galette, que inspirou Renoir no seu quadro que retrata o ambiente de baile da época, mas também Van Gogh e muitos outros. Encontramos outra referência mais recente aos moinhos de Montmartre, num dos meus filmes favoritos O Fabuloso destino de Amélie Poulain. Fica a poucos passos do Boulevard de Clichy o Café des Deux Moulins, onde a fabulosa Amélie trabalhava. 

Rua a rua, quase que passada a passada, as histórias ali não têm fim, ora sejam os ateliers de pintura com os seus janelões virados a norte para assim conseguir uma luz mais regular, ora a residência e estátua de Dalida a cantora, que adoptou Montmartre e que foi igualmente adoptada por Montmartre, é também ali que se encontra a estátua que retrata Dutilleul a personagem do conto Le Passe-muraille, sem esquecer o jardim no local onde Saint-Dennis, o primeiro bispo de Paris, que por causa da sua fé foi decapitado e que, transportando na mãos a sua cabeça, terá parado na sua última caminhada de cerca de seis quilómetros até ao local onde fica agora a Basílica erigida em sua memória. 

Mas, como dizia no início, a ideia surgiu em Março de 1910. A robustez financeira de quem fazia vida por Montmartre definia os locais frequentados. A irreverência boémia e os bolsos pouco abonados empurravam os marginais para os locais menos recomendáveis. O cabaré onde se passa esta história já tinha muitos anos e já tinha conhecido vários nomes. O mais antigo era o Au rendez-vous des voleurs, e se tivesse conservado esse nome, teria certamente merecido visitas regulares do nosso ex-governante que se mudou para a capital francesa, e não me estou a referir a Afonso Costa. Mas, adiante. Segundo as memórias da cidade, certa noite alguns bandidos que entraram como normais clientes, só saíram depois de terem assassinado o filho do proprietário. O trágico acontecimento foi divulgado pelos jornais e o novo proprietário, explorando o filão de notoriedade, mudou o seu nome para Le Cabaret des Assassins. O nome seguinte do referido estabelecimento, e que perdura até a actualidade, surgiu após uma pintura mural feita pelo caricaturista Andre Gill, onde um coelho é representado a fugir a uma caçarola. O que teria sido no início Le Lapin à Gill evoluiu para Le Lapin Àgile e depois para Cabaret Au Lapin Agile. 

Artistas falidos, o que é quase uma redundância, ali parodiavam sobre as tendências da arte, mais especificamente da pintura. Era o impressionismo que dava cartas mas, imaginaram eles, importava dar o passo seguinte. E foi assim que numa noite mais bebida, alguém se terá lembrado de fazer uma partida aos entendidos em arte. Recorrendo aos préstimos de Lolo, o jumento que pertencia ao dono do cabaré, foi pintada uma tela. Em vez de usarem pincéis, recorreram à cauda do Lolo, que este agitava de cada vez que lhe davam mais uma cenoura. E este foi o resultado. 

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O título escolhido para o quadro foi Et le soleil s'endormit sur l'Adriatique. O nome artístico do autor era Joachim-Raphaël Boronali, supostamente um italiano desconhecido que pintava segundo o estilo “excessivista”, algo que nunca ninguém tinha ouvido falar, mas que os foliões se encarregaram de descrever num extenso manifesto. Importa referir que a execução da obra foi testemunhada por um notário que assim pode documentar todo o processo.

A reacção não se fez esperar. Houve quem criticasse a nova corrente artística, mas também quem se entusiasmasse e não hesitasse em afirmar que se tratava de “uma maravilha da arte expressionista”. A revelação do que estava por de trás da nova corrente “excessivista” foi feita pouco tempo depois. O choque e a gargalhada revelaram-se na medida exactamente inversa das reacções iniciais. O vencedor de longo prazo foi o Cabaret Au Lapin Agile, que neste episódio conquistou um espaço na memória colectiva de Montmartre e assim conseguiu durar até aos dias de hoje.