“Pode fazer sentido voltar a ter PPP na saúde, mas noutro modelo”
“Quando se fala de uma reforma de saúde, alguém fala do privado? Ninguém fala sobre isso, até do próprio financiamento macro do sistema. É como se não existisse”, lamenta Isabel Vaz, CEO da Luz Saúde. A gestora do grupo que até janeiro de 2022 geriu o Hospital Beatriz Ângelo em regime de Parceria Público-Privada (PPP), […]
“Quando se fala de uma reforma de saúde, alguém fala do privado? Ninguém fala sobre isso, até do próprio financiamento macro do sistema. É como se não existisse”, lamenta Isabel Vaz, CEO da Luz Saúde.
A gestora do grupo que até janeiro de 2022 geriu o Hospital Beatriz Ângelo em regime de Parceria Público-Privada (PPP), considera que o regresso deste modelo pode fazer sentido, mas adaptado à nova organização do SNS em Unidades Locais de Saúde (ULS). “Se calhar o melhor para gerir isso era um consórcio entre uma seguradora e um prestador de saúde”, aponta em entrevista ao podcast À Prova de Futuro.
Isabel Vaz defende o regresso de estruturas regionais de administração da saúde. “Acabaram com as ARS [administrações regionais de saúde], lá saberão porquê, mas vai ter que haver alguma estruturação novamente destas ULS. Nós não podemos ter 39 ULS a responder a uma pessoa”, seja a ministra da saúde ou o diretor executivo do SNS, afirma.
Assista aqui à entrevista na íntegra:
A gestora, que lidera a Luz Saúde desde que foi criada há 25 anos, teme que no aumento de produção do SNS se esteja “só a olhar para os números e não para os ganhos em saúde”. “Nós aumentamos imenso o acesso, com produção adicional, mas será que estamos a fazer produção adicional que é mais prioritária?”, questiona.
Isabel Vaz considera também que é necessário estabilizar um modelo, porque, “neste momento, há muito barulho à volta do sistema”. “Os médicos precisam de silêncio. É preciso acalmar. Não se consegue fazer boa prestação de cuidados com tanto barulho”, afirma.
Como é que avalia o trabalho que tem sido feito pelo Ministério da Saúde neste Governo?
Isso é uma pergunta que para mim é extraordinariamente difícil, porque acho que para quem está de fora, que é o meu caso, está um bocadinho confuso e não é só com este Governo. Já está confuso há algum tempo. Ainda não está muito claro para os operadores, e penso que nem para o próprio SNS, exatamente qual é que vai ser o modelo final. Percebi que a grande prioridade do Governo quando entrou foi ver acesso, porque um dos grandes dramas do Serviço Nacional de Saúde é o acesso dos cidadãos na altura certa e no sítio certo.
Mas continuam a existir grandes constrangimentos no acesso.
Percebe-se que houve uma grande preocupação com essa variável. Há muitas outras variáveis.
Há um indicador que é fatal quando vêm dizer não há falta de médicos nem de enfermeiros. Está alguém desempregado nos médicos e nos enfermeiros? Não está pois não. Então há falta.
Mas sem grandes resultados práticos.
Não sei se é verdade, porque apesar de tudo foi muito doente operado. O problema é que nós temos uma população em que quase 25% tem mais do que 65 anos. Saímos de uma pandemia em que muitos cuidados foram parados. Nós sabemos isso bem, porque tivemos o privilégio de gerir o Hospital Beatriz Ângelo em plena pandemia. Chegámos a ter mais de 85% da nossa ocupação só com covid. Os hospitais estavam completamente cheios só com covid e foi-nos mandado parar outro tipo de prestações ou, se quiser, escolher aquilo que era mais importante. Isto afetou profundamente os hospitais, afetou profundamente os profissionais de saúde e afetou profundamente os doentes. Eu acho que ainda estamos com esse rasto em cima.
Estamos também numa mudança gigante do ponto de vista de recursos humanos, há muita falta. Há um indicador que é fatal quando vêm dizer não há falta de médicos nem de enfermeiros. Está alguém desempregado nos médicos e nos enfermeiros? Não está pois não. Então há falta.
Como se resolve?
É fundamental perceber efetivamente qual é o modelo. Eu vejo muitos comentadores na televisão, etc, pessoas que até nem percebem muito deste setor, mas hoje em dia toda a gente acha que percebe tudo. O setor é extraordinariamente complexo e há muitas maneiras de o organizar. Não tenho dúvida nenhuma que da esquerda à direita, o objetivo é que toda a gente em Portugal tenha acesso a saúde de qualidade e que isso seja independente da sua capacidade financeira. A forma de isto ser alcançado diverge, e há muitos modelos que têm que ser estudados. O professor Fernando Araújo encetou um modelo num determinado contexto e em determinadas circunstâncias. Entretanto isto evoluiu, também se aprendeu.
Neste momento há muito barulho à volta do sistema. Penso que os médicos precisam de silêncio. É preciso acalmar. Não se consegue fazer boa prestação de cuidados com tanto barulho.
Entretanto o Governo decidiu retirar competências à direção executiva do SNS.
Eu organizaria isto de forma diferente, mas não quer dizer que como o professor Fernando Araújo pensou, ou este Governo esteja a pensar, esteja errado. Na Europa, há muitas maneiras de fazer isto. Podia agora densificar mais, mas isso fica para outra conversa. Neste momento, o que me parece que é importante é que estabilizem uma forma de estar, porque neste momento há muito barulho à volta do sistema. Penso que os médicos precisam de silêncio. É preciso acalmar. Não se consegue fazer boa prestação de cuidados com tanto barulho.
Há muita instabilidade e incerteza.
O setor precisa de calma, precisa de estabilidade. Se eu tivesse que só dizer uma coisa sobre a reforma, e penso há pouco tempo ouvi o professor Correia de Campos dizer a mesma coisa, é um homem com muita experiência, é que nós não podemos ter 39 ULS (Unidades Locais de Saúde) a responder a uma pessoa. Isso não existe. É um span of control [amplitude de controlo] brutal. Acabaram com as ARS, lá saberão porquê, mas vai ter que haver alguma estruturação novamente destas ULS. Não é possível gerir assim. Um ministro tem muitas responsabilidades. Tem a prestação propriamente dita, mas também tem a Direção-Geral de Saúde que é fundamental no sistema, tem a IGAS (Inspeção-Geral das Atividades em Saúde), tem a tutela da Entidade Reguladora da Saúde, o Instituto Ricardo Jorge, o INEM. Ou seja, a ministra não tem só o SNS para gerir. Definitivamente não pode ter estas coisas todas e ainda 39 pessoas a responderem a ela. Mesmo que eu tenha um CEO do SNS, vamos ter que voltar a ter alguma estruturação regional. E podemos pensar que se calhar as 39 ULS não estão bem definidas.
Pode ser necessário ajustar o modelo?
Para mim o que é fundamental é perceber onde é que ficam os cuidados primários. A visão do professor Fernando Araújo, e de muita gente, foi a integração dos cuidados, ou seja, eu vou fazer ULS em que eu integro cuidados primários com os hospitalares. À partida, ninguém pode dizer que está errado, como é evidente. Mas uma seguradora muitas vezes pensa na medicina geral e familiar como alguém que está do lado de quem gere prestação. Porquê? Porque são controladores, são gatekeepers do sistema. Se eu pensar nos cuidados primários como alguém que é independente e é provedor do doente na escolha daquilo que vão ser os cuidados hospitalares a seguir já pode não ser esta a formulação.
Aí faz sentido os cuidados primários estarem separados?
Por exemplo, na Holanda tem o Estado enquanto uma ACSS (Administração Central do Sistema de Saúde), que é o financiador e quem define a apólice e depois capitações para gestores de cuidados, que até estão em concorrência. E esses gostam dos cuidados primários isolados. E depois tem quem gere de facto o instituto de gestão hospitalar. O que temos que pensar é quando nós temos um financiamento por capitação, as capacidades para gerir uma capitação são mais parecidas com aquilo que faz uma seguradora ou um gestor de cuidados do que a gestão hospitalar. As ferramentas que precisa de utilizar são distintas daquelas que são as ferramentas de quem sabe gerir hospitais. E, portanto, quando nós passamos de um modelo de fee for service para os hospitais para uma capitação, estamos a falar de uma transformação absolutamente gigante. Portanto é preciso calma a ver isto tudo. Eu diria que é importante menos barulho, deixar as pessoas trabalhar e, sobretudo, falarem umas com as outras, porque isto é fundamentalmente técnico.
Neste momento, uma PPP em Saúde não sei bem o que seria. É uma ULS? Então se calhar o melhor para gerir isso era um consórcio entre uma seguradora e um prestador de saúde.
Estava pouco a falar do Hospital Beatriz Ângelo. Acha que fazia sentido, com outras condições, voltar a apostar nas Parcerias Público-Privadas (PPP) na Saúde?
Isto prende-se com o que acabámos de falar. Neste momento, uma PPP em Saúde não sei bem o que seria. É uma ULS? Então se calhar o melhor para gerir isso era um consórcio entre uma seguradora e um prestador de saúde. Eu acho que o país tem é que ter um modelo coerente. Há uma pressão grande politicamente, porque é um setor muito politizado, e uma coisa é certa: não se pode ignorar o papel do setor privado, quando o financiamento dos seguros e o nosso individualmente, representa mais de 30% do setor. Portanto, neste momento, o financiamento privado, seja ele através dos seguros ou das famílias é 4% do PIB. Não se pode fazer uma reforma dizendo: “não quero saber que isso existe, vou ignorar que isso existe”. Se o setor privado não estiver dentro de uma visão global integrada do ecossistema, cria incentivos errados, para o próprio SNS e para o próprio setor privado.
Mas dentro dessa lógica, fazia ou não sentido voltar a ter PPP?
Eu acho que pode voltar a ter sentido fazer PPP, mas no modelo atual não seria nunca a mesma PPP, porque neste momento, quanto muito, o que eu estaria a ver era uma ULS.
Teriam de ser PPP noutro modelo.
Noutro modelo. Agora eu acho que, além disso, tem é que se pensar nesta articulação. Aquilo que não está em PPP e que objetivamente existe e é brutal. O Hospital da Luz em Lisboa fez praticamente 4.000 partos no ano passado. É uma grande maternidade, tem importância sistémica no sistema. Os nossos serviços cardiovasculares têm importância sistémica no sistema. São hospitais muito grandes e a mesma coisa para os meus competidores.
O setor privado tem sido ignorado até agora.
Quando se fala de uma reforma de saúde, alguém fala do privado? Ninguém fala sobre isso, até do próprio financiamento macro do sistema. É como se não existisse. Tem havido agora aqui — ainda não percebi muito bem — uma integração com o setor social. Nós costumamos brincar no setor que o nosso problema é termos o que chamamos de political relevant outcome measures [indicadores de produção politicamente relevantes]. E as political relevant outcome measures na saúde não são necessariamente aquilo que nós no terreno, público e privado, temos que gerir. O que é uma political relevant outcome measure? Número de utentes sem médico de família. Listas de espera.
Nós aumentamos imenso o acesso, com produção adicional, mas será que estamos a fazer produção adicional que é mais prioritária ou estamos a fazer uma produção adicional que se calhar não o é, quando temos dificuldades de recursos, de gestão de blocos operatórios, etc?
Isso pode ser problemático.
Eu tenho medo. Nós aumentamos imenso o acesso, com produção adicional, mas será que estamos a fazer produção adicional que é mais prioritária ou estamos a fazer uma produção adicional que se calhar não o é, quando temos dificuldades de recursos, de gestão de blocos operatórios, etc? Para mim não é claro. Mas para o político só interessa: “fizemos mais não sei quantas cirurgias”. Mas que cirurgias é que fizemos? E com que resultados? Por exemplo, fizemos mais cirurgia oncológica. Mas tratar um doente oncológico tem mais coisas, não é só cirurgia, mas isso não interessa nada porque a political relevant outcome measure é a cirurgia.
Estamos só olhar para os números e não para os ganhos em saúde.
Quais são os doentes que neste não podem mesmo estar sem médico de família? Se calhar há uns mais prioritários que outros. Estamos só olhar para os números e não para os ganhos em saúde. Outra coisa que me preocupa nas reformas é que é preciso ter muito cuidado com as aplicações cegas. Por exemplo, o Centro de Responsabilidade Integrada neste momento pode estar a ter implicações sobretudo nos serviços que são transversais num hospital, como as medicinas internas, radiologia e os cuidados intensivos. Se calhar o modelo não pode ser esse. Eu não posso ter uma espécie de mercado interno dentro dos hospitais desregulado. Eu sou ortopedista e quero um internista só para mim, então vou ao serviço de medicina interna e vou lá sacar. Isto tem implicações profundas na formação médica e tem implicações profundas na maneira como os profissionais trabalham e evoluem ao longo das suas carreiras. Portanto, menos barulho, mais calma.