Como é produzir a batida perfeita nos dias de hoje?

Artistas refletem sobre o papel do produtor e do beatmaker no mundo digital e como essa revolução faz parte do hip hop. The post Como é produzir a batida perfeita nos dias de hoje? appeared first on NOIZE | Música do site à revista.

Jan 28, 2025 - 11:11
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Como é produzir a batida perfeita nos dias de hoje?

A história do hip-hop é a história da reinvenção: jovens negros escavando de maneira faminta os discos antigos da família e os transformando em música nova. Grandmaster Flash, ao realizar o loop perfeito dos breaks de bateria, criou o solo do que hoje é reconhecido mundialmente como música rap. O MC e produtor Kamau destaca o DJ como alicerce: “Nos grupos de rap de antes, o DJ era a primeira pessoa. Grandmaster Flash & The Furious Five. Eric B & Rakim. Jazzy Jeff & The Fresh Prince — He is the DJ and I am the rapper”.

Com essa fundação, as MPCs (Music Production Controller) não demoraram muito para se tornarem a máquina preferida dessa juventude sem oportunidade de produzir em estúdio, mas transpirando criatividade. Logo, as DAWs (Digital Audio Workstation) impulsionaram a integração entre hardware e software e hoje, todas essas técnicas podem ser fundidas na produção de um rap — do baixo tocado em estúdio a uma bateria sampleada numa MPC-3000 e finalizada no programa Pro Tools.

Em 2020, debatível ou não, o hip-hop é a cultura mais influente do mundo, com seus efeitos sentidos nos campos da música, moda e até mesmo nas artes plásticas. Produtores de outros gêneros tiveram de se acostumar com a presença de nerds negros invadindo as premiações e ocupando os charts, muitas vezes nas primeiras posições. De superprodutores transformando a paisagem musical do pop até os avanços na linguagem das batidas nas raízes do underground, a cultura hip-hop colocou o beatmaker no mesmo patamar de produtor musical. Conversamos com NAVE, Kamau e Dr. Drumah — três produtores/beatmakers do disco Assim tocam MEUS TAMBORES – para investigar quais são as interseções entre os dois ofícios.

NAVE

NAVE é o responsável por muitos clássicos do rap nacional. Desde “E.M.I.C.I.D.A” – canção que o batizou de “zika da base” –, até a produção musical de Batuk Freak (2013) e Rá! (2015), de Karol Conká e Ogi, respectivamente, além do hit de Marcelo D2, “Desabafo”, presente no disco A Arte do Barulho (2008). A música foi trilha sonora do filme Velozes e Furiosos 5 (2011) e também reconhecida no Grammy Latino. “Foi o momento de virada da minha vida, uma catarse. Se não fosse por ela talvez eu não tava nem trocando ideia aqui”, diz o produtor.  

Apesar do apreço pelas batidas estar presente na vida do artista desde muito cedo, fazer beat não era o principal plano de NAVE. “Eu jogava futebol, participava de peneira”, conta. As coisas mudaram quando entrou na Escola Estadual do Paraná e conheceu o amigo William, que tinha a mesma vontade de ter um grupo de rap. “Vivia fazendo freestyle na rua, no recreio, onde fosse, então quando a gente lançou o nosso primeiro trabalho, uma fitinha-cassete, a única pessoa que tinha familiaridade com programa de fazer batida, gravação, era eu”.

Foi esse primeiro trampo que chegou nas mãos de Marcelo D2, através do rapper e ex-guitarrista do Planet Hemp, Jackson. “Era uma coisa muito rap com samba, bossa nova com rap. Eu sampleava muita música brasileira por influência do Eu tiro é onda (1998)”. O beatmaker enviou para o rapper carioca um disco recheado de batidas, que rendeu a música “É preciso lutar”, do álbum Meu Samba é Assim (2006).

Quando você fez o seu primeiro beat?

Meu padrasto tinha um som duplo deck, que tem lugar pra duas fitas-cassete. Descobri a função de “mixar” camadas. Peguei um CD que eu tinha do Gangstarr, na parte que tinha um break de bateria, tentei loopar, mas ficou um loop mal feito. Peguei um CD de música clássica, um pedaço de um piano e tentei colocar em cima. Foi bem tosco mas foi meu primeiro beat. Meu padrasto começou a comprar uma revista mensal, que vinha sempre com um CD com alguns programas demo. Num desses, veio o Sound Forge, o meu primeiro contato com música de computador, em meados de 1998.

Como você analisa a valorização do beatmaker no Brasil?

Nos EUA, a coisa é um pouco mais avançada. Aqui eu acho que os produtores estão começando a ter um lugar de destaque, mas o que sinto é que por mais que se dê valor ao beatmaker — que está começando a tomar uma posição de artista — ainda não é totalmente valorizado. Só botar o nome no Spotify ou falar o nome do cara na faixa não paga conta.

O que você pensa sobre os type-beats?

Felizmente, tenho minha carreira atrelada a pessoas que gostam de colocar uma vírgula nas coisas, sabe? O ponto de vista delas. Se você quiser ser ao invés de parecer, tem que ter uma vírgula de identidade. Só que num mundo onde as coisas viralizam em um dia e no outro não são nada, tudo é possível. É o caso do cara que fez o beat de “Old Town Road”, o cara fazia type-beat. Para a molecada que vende como um bom negócio, fica difícil dizer para não fazer essa parada. Não vou ficar julgando. Na minha época, o sonho era ter uma MPC, é reflexo da era.

Kamau

Figurinha carimbada quando se fala em hip-hop no Brasil, Kamau sempre gostou mais de rimar, mas também cultiva apreço pela produção. “Fiz o disco inteiro do Simples, fiz também o meu EP Licença Poética (2015), metade do Non Ducor Duco (2008), sempre gostei bastante da ciência da batida”, conta sobre sua trajetória. Quando começou a rimar, em 1997, o acesso aos beats era escasso, então os MCs nacionais precisavam escrever sobre batidas que chegavam no Brasil. 

Junto de Sagat e Ajamu, Kamau fechava o trio Consequência, quando descobriram que a MPC era o equipamento usado para fazer o tipo de batida do rap que eles curtiam — até serem apresentados ao Fruity Loops, novidade proporcionada pelo Parteum. Antes disso, Kamau fez o primeiro beat no Sound Forge, assim como NAVE. O software de duas pistas, mesmo com limitações, permitia a criação de primeiras versões das batidas – que posteriormente seriam desenvolvidas em outras plataformas.

Os softwares democratizaram a produção de batidas?

Deram acesso, não necessariamente democratizaram. Assim como para algumas pessoas era fácil fazer rap, as batidas também se tornaram essa parada. Não posso negar que deu oportunidade para mais pessoas, mas também deu essa ideia de “ah, qualquer um faz isso”. E uma resistência de quem usava hardware e de quem era habituado ao estúdio. Algumas pessoas mostraram que era possível fazer com qualidade nessas poucas condições. Primeiro, era mais sobre criatividade e depois começou a se prezar pela qualidade.

Quero que você fale sobre o momento das beat tapes e os beats autorais, pensando no trabalho de nomes como Donuts e J Dilla, por exemplo.

O Dilla, quando fazia beat tape, realmente era para os MCs que ele gostaria que rimasse ou para simplesmente mostrar beats. Então a beat tape não começou no Donuts e os discos de instrumental também não A gente vê antes o Endtroducing (1996) do DJ Shadow e Dead Ringer (2002) do RJD2, que lógico, tem MC’s, mas também tem bastante faixas que não contam com vocal.

O produtor [de rap] começou a aparecer mais e o beatmaker começou a se tornar um artista por si só, de uns vinte anos anos para cá. O Marley Marl era o cara que era a chancela de produtor da Juice Crew. O Bomb Squad, crew de produção do Chuck D, são os responsáveis pelo som do Public Enemy. Quando o Ice Cube saiu do NWA, que também contava com o Dr. Dre, ele foi produzir com o Bomb. Era como se fosse “pra ser bom tem que passar por esse cara”, ou “se tem esse cara a parada é boa”.

Dr. Drumah

Dr. Drumah é o pseudônimo de Jorge Dubman, baterista da banda IFÁ (Ijexá Funk Afrobeat). As duas personalidades conversam: muito do que o Drumah faz com os beats vem da sua relação com os pratos, bumbos e caixas. Antes de se aprofundar nas DAWs em um curso na ONG Eletrocooperativa em Salvador, no ano de 2003, ele já era baterista, acompanhando, principalmente, bandas de reggae e ouvindo sempre rap, jazz e, é claro, o jazz rap. 

O instinto de pesquisador o fez criar interesse pelo beatmaking. “Eu nem produzia mas já imaginava: ‘Pô, isso aqui dá um sample, então no dia que eu começar a produzir vou querer samplear isso aqui’”. Dr. Drumah produziu dois discos da IFÁ, um da Dubstereo e tem um trabalho autoral de beatmaking. Devido a contatos que fez pela internet, o seu trabalho como beatmaker tem extensa rotação internacional, e já foi registrado em vinil e cassete por selos internacionais – processo frequente para quem segue o caminho autoral no Brasil. “A indústria fonográfica aqui não dava muito ibope para o termo beatmaker, achavam até que era uma brincadeira. Lá fora eu assinei contrato, recebo uma grana periodicamente, é coisa séria,” afirma.

Onde foi o ponto em que os beatmakers se afirmaram como artistas?

Quando comecei, sempre pegava as versões instrumentais dos discos e escutava, era uma coisa que nem todo mundo tinha paciência. Tive essa visão quando quis fazer um trampo de batida, que não precisava de um MC rimando. Se rolar um MC, beleza… O foco em si, é ser um beat instrumental. Tem gente que fica esperando que fulano de tal grave na batida, não tenho essa visão romântica da parada, mas se rolar, beleza — como foi espontaneamente com o D2 na faixa “É MANHÃ (VEM)”. 

Pete Rock, Large Professor, Q-Tip, Premier… Você pega o Illmatic e esses caras estão produzindo junto, sem ego, um escutando a batida do outro. Principalmente o Pete Rock, que sempre lançou disco instrumental. Sem o beat, o MC vai fazer a capella. Todos esses caras que eu citei são fundamentais na cultura. 

Como era seu diggin’ antes e depois da internet?

Comprava CDs porque sempre fui rato de ficha técnica. Procurava nos CDs de rap a parte que tinha a descrição “sample used from James Brown” e fui caçando os discos que eu não conhecia. Teve uma época em que eu andava de skate e a principal forma de pesquisa eram as fitas VHS da 411 Video Magazines. Rolavam várias trilhas e eles mostravam a capa, nome da música e o nome do álbum. Eu dava pause e anotava tudo num caderno. Depois veio a internet que quase ninguém tinha acesso, então eu ia pra lan house pesquisar, mas antes disso era no disco mesmo. Saia da escola, ia visitar sebos comprar disco, ver, ouvir — começou assim.

Quais são as diferenças e semelhanças entre ‘beatmaker’ e ‘produtor’?

NAVE: Hoje em dia, no mundo, qualquer pessoa que faz batida é tida como um produtor. Isso falando do mundo da música regido por programas como Fruity Loops, Ableton e Logic. Mas eu acho que a grande diferença é a responsabilidade. Quando comecei a trabalhar com a Conka, fiz o disco sozinho, tinha faixas que eu precisava de músicos e aí eu comecei a entender o papel de produtor. Na sequência, veio o Rá! e nos dois discos eu estava construindo o conceito com os artistas, foi onde mostrei a capacidade de coordenar um projeto.

Kamau: O produtor é o cara que leva a música ao resultado final, que entrega uma gravação. Tem produtor que não faz [batida de] rap. O Ganjaman é um ótimo exemplo de produtor e beatmaker: ele faz beat mas também leva a música do começo até o final, desde a concepção do tema musical. Pega uma banda, analisa as ideias e o que pode ser feito com isso; é tipo você ser técnico de um time e fazer esse time jogar.

Dr. Drumah: O papel do produtor musical é semelhante ao de um diretor de filme. O beatmaker as vezes é para produzir uma batida, entregar e acabou. Aí entra o papel do produtor, que vai sentar com o cara que vai mixar a música, masterizar, editar. Muitas vezes, o beatmaker engloba tudo isso, principalmente na música independente.

Como é o seu setup de produção? 

NAVE: computador com Ableton, par de monitores de áudio, fone, controladora e teclado MIDI, instrumentos de corda, percussão e uma porrada de vinil.

Kamau: MPC Renaissance e o software dela, Toca-disco Mix SL1210, Mixer Reign e microfone Shure SM-7. (Na música que produziu para ATOMT, “4a ÀS 20h”, usou o barulho da rodinha de um carrinho em miniatura e o som de moeda dentro de uma lata). 

Dr. Drumah: Fruity Loops, MPC-1000, Sampler SP-303 e Sampler SPD-S, para uso com baquetas — máquinas que requerem tempo e intimidade.

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