O Blog Listas Literárias leu
De onde eles vêm, de Jeferson Tenório publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de
Douglas Eralldo ou sobre as tantas formas de violência da vida e toda a força hostil que por vezes ela pesa sobre as pessoas, confira:
1 - Brutal, mas com uma suavidade tempestuosa, Jeferson Tenório nos força a olhar para as nuances e para a fuga do óbvio ao tratar daquilo que marca sua obra: a denúncia do racismo estrutural vigente em nossa sociedade. Todavia, não como panfleto e nem mesmo como denúncia, o que pode parecer paradoxal, mas o que há de fato aqui é literatura, aí sim, em todo aquele potencial que ela tem de desvelar as piores verdades por meio da ficção. Aliás, ao se questionar do que é literatura ou suas funções, a própria narrativa tenta ir a conceitos para além disso, seja pelas polemizações literárias de Sinval, um dono de sebo, ou pelo próprio narrador do romance, Joaquim, que resgata pela memória sua jornada de vida sobressaltada pelas tantas experiências que um jovem negro passa no país;
2 - Narrado, portanto, por Joaquim, em grande parte a narrativa reproduz em sua memória a juventude de um garoto negro que está entre os primeiros grupos de estudantes universitários a entrar na universidade pelo sistema de cotas. Ambientado na região metropolitana de Porto Alegre, o narrador que percorre o campus da UFRGS às ruas da periferia de Alvorada - nos entrega com isso, inclusive a distância entre tais mundos - num esforço gigantesco em tentar estudar. Joaquim, como tantos jovens nesse país, é mais um filho órfão de pai num país ironicamente patriarcal, mas cujos pais costumam a desaparecer. Vive com uma vó adoentada que carece cuidados e atenção e uma tia que faz faxinas para sobreviver. Com o sonho de ser escritor, o narrador-protagonista tenta então cursar letras e suas primeiras descobertas já lhe causam alguns reveses no curso;
3 - Cremos que essa breve síntese auxilia compreender do que se trata a narrativa, entretanto, como falamos na abertura deste texto, quando lemos Jeferson Tenório temos de ir para além de qualquer superfície, pois o autor não apenas conhece todo o ferramental da construção literária, como usa-o, que aos leitores mais assodados podem perder as resistências ou os rompimentos propostos em sua literatura. Na verdade, Tenório em seu narrar provoca rupturas aos modelos com uma singeleza que por vezes quase nos escapa, quando quebra certas convenções da linguagem, como nas limitações sabidas a um narrador em primeira pessoa, que de modo geral é mais limitada. Contudo, como já vimos em
O avesso da pele, entre os conceitos que parecem permear sua visão de literatura está a capacidade de preencher espaços e acontecimentos pela imaginação, não uma imaginação absoluta, pura fantasia, mas uma imaginação do pláusivel, como a aparente oniscência de seu narrador em primeira pessoa; Entretanto, quando vemos a confissão do narrador: "Devo dizer que tentar entrar na mente das pessoas e inferir seus pensamentos e atitudes era meu esporte preferido", ao leitor racional que estranha "as inferências" do narrador-Joaquim, ganha certo sossego. Contudo, não creio que a confissão esteja aqui apenas para justificar um narrador em primeira pessoa onisciente, o que seria de certo modo um rompimento do modelo, mas funciona, ao menos a mim, muito mais como lembrança de que a literatura é lugar da alteridade, o campo em que podemos, não viver as experiências do Outro, mas ao menos tentar, desde que acompanhada da consciência do que se perde no processo;
4 - Além disso, como dissemos, Tenório nos força a fugir do óbvio, mas isso porque ele mesmo não parte do óbvio. Seu narrador Joaquim é um bom exemplo disso, como podemos ver em alguns pontos relevantes. O primeiro deles talvez seja pela opção em Joaquim ao narrar uma obra que versa do princípio da aplicação da política de cotas. Como nada aos negros na história desse país veio de graça, como se faz parecer pelo dadivismo, por exemplo, consagrado a uma Princesa Isabel, a política de cotas tampouco é a dádiva de um governo, ainda que se respeite os avanços progressistas dos governos do princípio do século XXI. Nada disso, as cotas foram conquistadas por movimentos sociais e de luta que há muito batalhavam por essa reparação equitativa, e é aí que reside o fato de Tenório não partir do óbvio. Para tematizar, qualquer autor bem poderia optar por trazer essa história pela voz de um personagem engajado, alguém no centro da luta pelas cotas, apropriado do tema e do debate, Tenório vai pelo caminho mais tenso e simbólico, o do aluno cujo direito ainda não foi plenamente compreendido, assimilado, o aluno - personagem - permeado por uma permanente sensação de não pertencimento. A violência no sub-título deste texto não é a violência do negro mantido sempre no gueto, são outros tipos da eviolência da vida sob esse olhar que se afasta do óbvio. Quem narra é um jovem negro que representa tantos outros - para os quais a vida está pre-determidada, e não entrar em uma universidade é uma dessas pré-determinações. Esse narrador, diferente de outros estudantes negros com quem interage, mas não forma grupo principal, está alheio às discussões sobre o sistema que permitiu suas entradas na Universidade [Saharienne e Lauro são personagens que na trama trazem essa consciência], autocentrado em sua paixão pela literatura, por certo sentimento inicial de sentir-se especial, mas ter a realidade sempre como contra-argumento. Fugir do óbvio, no caso de Tenório, nesse caso, não é simplesmente fazer uma declaração da importância dessa política pública, mas especialmente desvelar que a questão e a prática mostram-se muito mais complexas e desafiadoras;
5 - Isso porque também é fugir do óbvio ir além da esperança ingênua que basta criar a política pública e está tudo resolvido. A suavidade acachapante de Tenório então traz um ambiente que a despeito de parecer progressista, não está imune da longa trajetória dos preconceitos raciais nesse país. O estranhamento para com os novos alunos que chegam, as relações genéricas [ou virtuais] que se criam entre os estudantes, com professores, tudo isso salta das páginas e para quem viveu, como no nosso caso, o ambiente das universidades federais, bem o sabe quão magistral e aproximado é o relato que vem no livro acerca das resistências à entrada no Ensino Superior Público de pessoas que sempre foram mantidas longe desse processo. Um ambiente hostil e um contraste gigantesco, como veremos quando Joaquim compara sua experiência com a experiência de outros colegas, as leituras, as línguas, etc... Tenório traz um personagem que busca integrar-se, busca dedicar-se especialmente porque de fato imagina-se um escritor;
6 - E aqui um dos aspectos mais importantes da narrativa, Joaquim não vem pelas tintas do estereótipo [imposto pelos brancos frustrados, deixe-se claro, e refutado pelos históricos acadêmicos e tantas pesquisas que demonstram rendimento igual ou superior] do rendimento baixo dos alunos cotistas por causa da defasagem do ensino público. Joaquim subverte essa invenção branca e reacionária de duas formas: a primeira é que, especialmente nos primeiros semestres, Joaquim consegue fazer tudo que se espera de um bom aluno, dedicação à leitura dos textos, uma participação efetiva em sala de aula, questionador, dedicado às atividades. A despeito do que ele pensa, é um estudante que passa a ser admirado. Além disso, há outro aspecto relevante na caracterização de Joaquim, ele foi fisgado pela literatura. É um jovem letrado literariamente. Tanto que entre suas amizades está Sinval, o dono do sebo, com que trocam ideias literárias. As marcas permanentes da literatura na alma de quem lê será uma constância na narrativa, que para além das reflexões metaliterárias do romance, apontam tanto para suas vantagens, quanto para suas desvantagens, mas logo trato disso, antes precisamos retomar o subtítulo do post;
7 - A vida com toda sua força e violência não precisa de balas, socos ou facas para arrebentar sonhos. Estudar demanda comprometimento de tempo, seja no turno diurno que impossibilita trabalhar, seja no noturno quando se tem de conciliar duas coisas exigentes. No caso de Joaquim, como fazer isso quem vive com a aposentadoria de uma vó que demanda remédios, cuidados, atenção, além de todas as contas do mês? Como estudar tendo que passar noites em um hospital cuidando da avó? Tenório lembra-nos que apenas o ingresso pode ser ilusório, estudar em uma graduação significa capacidade de manter-se nela por pelo menos quatro anos. A vida então, de todas as formas vai aplicando sua força sobre Joaquim criando então uma espiral de desilusões e brutos choques de realidade;
8 - E se a vida é o que é, a literatura é capaz de intensificar essa experiência. Ela é capaz de desvendar os olhos de tal forma, que não é nada tranquilo. Joaquim em certo momento diz "Entretanto, eu já tinha me tornado um leitor, e já havia lido o suficiente para me revoltar". Ocorre que como o próprio Joaquim narra "Quando você se torna leitor, viver de maneira harmônica com o mundo é impossível. A impressão é que estamos em constante desacordo com a realidade". Os desacordos de Joaquim serão muitos, com o curso, com os colegas, com as relações amorosas, com própria escrita. A literatura não resolve nossas questões, não diretamente pelo menos, mas ela desnuda nossas realidades. Isso leva Joaquim para longe do óbvio, porque não basta ele sentir-se deslocado no curso, mas sente-se assim na própria vida, na própria comunidade. Na verdade sua inquietação resiste na não aceitação do que lhe é pré-determinado enquanto jovem negro. E quando a vida passa a exercer essa força sobre ele, a empurrá-lo para o lugar onde o permitem/exigem ficar, tudo se intensifica, o narrador sucumbe a uma série de desventuras e não com desrazão toda sua aflição e angústia perante tudo. A queda é angustiante e nem mesmo as pequenas vitórias são definitivas numa tragédia que repete-se aos montões lá fora;
9 - A vantagem de escrever essas resenhas, estranhamente em listas, é que elas me permitem interlúdios. Como aqui. Não poderia encerrar o texto sem falar de algo que desde O avesso da pele compreendo relevantíssimo em Tenório. Seu olhar para o drama da educação, seja no ensino básico, seja no ensino superior. Poucos autores contemporâneos são capazes de trazer uma visão tão aproximada dos desafios e problemas desse sistema composto não por uma parte, mas por partes, cada qual desencantada por suas razões, sejam alunos ou professores [algumas outras partes desse sistema não parecem muito preocupadas]. Mas não se trata apenas de desencanto, há também ideologias, e isso salta nas representações de Tenório. E ambiente acadêmico trazido no livro é vívido, especialmente nos seus problemas. A questão da educação é uma presença tão firme nas suas obras, de modo que espanta-me professores, e houveram alguns, criticá-lo. Tenório entende de chão de sala de aula, lugar que estece por muito tempo. Mas, enfim, estou quase me perdendo aqui, o interlúdio se propõe a falar de outro efeito causado neste específico leitor no decorrer de sua leitura do livro que, diga-se, foi voraz. Quero falar aqui da identificação com Joaquim. É uma identificação problemática, claro, não há como me identificar plenamente com a experiência negra do narrador, isso é inviável a um Leitor Não Negro, ainda que companheiro de classe social de Joaquim. Não, não há como se identificar plenamente porque a experiência negra é única e tenebrosa [muitos de meus alunos que o digam]; mas com muitas outras experiências de Joaquim estabeleceu-se uma conexão assombrosa por vezes (como hospedar-se num quarto 106 em Torres rs). A primeira é a mordida pela literatura e pelo incômodo com tudo que ela te provoca, o deslocamento, a permanente sensação de ser um apátrida, de pensar, é pra isso que vivemos? Além disso, a ambientação numa Federal ampliou essa identificação porque Tenório remexe muitas feridas no ensino superior as quais pude testemunhar. Cursei letras quase duas décadas depois do ingresso de Joaquim, com outras políticas afirmativas sendo colocadas em prática. Se na letra dos Racionais nos anos 90 "nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros", próximo da nova década de 20, em virtude dessas políticas afirmativas, os números haviam mudado substancialmente, mas de longe não se via a utopia da inclusão ou igualdade. Tudo o que Tenório traz no romance, persiste, o incômodo de professores com o novo perfil de estudantes [mesmo os ditos progressistas incomodam-se], as críticas em petit comitee ao processo para muitos responsável por uma decadência no ensino, o desencanto pela profissão, tudo isso num pacto silencioso de não nomear o nome da coisa que muitas vezes move tais reclamações. Nas Letras - ambiente que Tenório conhece bem - não é livre disso, e ampliado pela tentativa permanente de coptação da literatura pelas elites que se dá de muitas formas, entre elas estranhar que um jovem como Joaquim queira a literatura. Impossível não se identificar com tal cenário. Quando a vida impõe a Joaquim o revés esperado, afinal, pode ingressar, mas se manter é outra coisa, além disso, evocou-me lembranças da primeira tentativa de graduação. A um jovem pobre sempre se construíu um muro de 100 metros de altura para entrar no ensino superior, no caso de um jovem pobre e negro como Joaquim, esse muro se multiplica em altura, mas em muitas vezes. A sociedade quer apenas mão-de-obra alienada, barata e afastada dos livros, como quando o empregador não permite Joaquim deixar seu livro do Baldwin sobre a mesa. A vida - ou ao menos a sociedade desigual que temos - espera algo de jovens como Joaquim, algo simples para essa sociedade, trabalhe, beba um pouco se puder e seja feliz nesse seu cantinho. O problema, como Joaquim demonstra, é que ao se tornar leitor a perspectiva muda. Seja um bom frentista diz a vida para Joaquim (outra profissão partilhada com Joaquim), te encolhe. Contente-se. No caso de Joaquim nem uma boa nova é suficiente de salvá-lo da pré-determinação. Talvez o que queira dizer nesse interlúdio é que em grande parte a identificação ocorre no partilhar da importância da leitura literária. Quando Joaquim diz que depois de ser leitor tudo muda, o que parece nos dizer é que ela alia está para primeiro nos lembrar do estado das coisas, despertar certa consciência, e depois uma lembrança permanente, isso pode ser diferente. Provavelmente por isso a insistência de carregar seus livros quando tudo se esvai , quando precisar sobreviver da forma como a vida lhe impõe. Carregar seus livris juntos é a lembrança da pergunta, mas tem de ser assim? Quando nos perguntamos instalamos pequenos pedaços de revolução em nossas ideias. Enfim, fazendo os apartes necessários, em muitos momentos a narrativa trouxe-me comovente identificação dentro das possibilidades;
10 - Enfim, interlúdio longo, mas necessitava fazê-lo. O livro chega ao fim entregando-nos o ponto em que está seu narrador, alguém que a vida aplicou sobre toda sua força e violência, a esperança trespassada pela brutalidade da sobrevivência comum, ou seja, a sobrevivência básica e longe de qualquer dignidade. E o tom aparentemente suave da narração torna tudo mais intenso e brutal, ao menos para quem carregue consciência. Ao cabo, Joaquim fecha o livro lembrando-me os conceitos de Bosi para resistência, a insistência, o permanecer vivo, insistindo. Se por um lado há melancolia, há também sopros de esperança pequenos a nos apegar, ainda que, talvez ressoe certa ironia tristonha nas últimas palavras escritas pelo narrador e o contraste do que está a fazer e o que há no por vir do horizonte. Mais uma baita obra do Jeferson Tenório.