Usar o ChatGPT consome uma garrafa d’água de 500 ml; e daí?

Qual o custo ambiental de terceirizar tarefas ingratas ao ChatGPT? Talvez a métrica mais popular para esse grande dilema dos anos 2020 seja a da garrafinha de 500 ml de água para cara ~50 perguntas ao ChatGPT. É muito? Pouco? A troca vale a pena? Como em tudo na vida, a resposta é: “depende”.

Fev 6, 2025 - 11:10
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Usar o ChatGPT consome uma garrafa d’água de 500 ml; e daí?

Das óbvias às delirantes, é longa a lista de preocupações com a inteligência artificial surgidas desde o final de 2022, quando o ChatGPT tomou do metaverso ou dos NFTs o título de “tecnologia do futuro”.

Tenho pensado muito a respeito de uma delas: o uso excessivo de energia e água, necessários para dar conta da sede insaciável de big techs e startups por mais dinheiro1.

Qual o custo ambiental de terceirizar tarefas ingratas ao ChatGPT, como escrever relatórios que ninguém lê ou gerar uma imagem de feliz aniversário àquela tia, com quem você não fala há seis anos, no grupo da família no WhatsApp?

Talvez a métrica mais popular para esse grande dilema dos anos 2020 seja a da garrafinha de 500 ml de água para cara ~50 perguntas ao ChatGPT.

É muito? Pouco? A troca vale a pena? Como em tudo na vida, a resposta é: “depende”.

Todo dado do tipo, se analisado sozinho, soa absurdo. É preciso contexto. E quanto mais contexto, melhor. Nesse caso, interessa-nos em especial os relacionados a outras atividades corriqueiras que fazemos na internet, ou seja, que também dependem de grandes centros de dados, e o custo-benefício de jogar gasolina (mesmo que algumas gotas) no aquecimento global em troca de verborragia artificial e imagens cafonas.

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Há estimativas de que a corrida da IA dobrará a fatia do setor de tecnologia no consumo global de energia até 2026. O que… é bastante, considerando que o setor consumia entre 1–1,3% total no ano 0 AC2.

O que eu ou você podemos fazer se acharmos esse aumento um desperdício? Sendo bem honesto, acho que nada. Para nós, meros mortais, a IA é inevitável. Gostemos ou não, os executivos das grandes empresas — quem dá a palavra final nos apps e sites que usamos no dia a dia, e como os usamos — estão convencidos de que essa tecnologia é revolucionária.

Não só convencidos: estão investidos até o pescoço, esperançosos de que, como toda tecnologia de fato revolucionária, a IA reserva gordas recompensas àqueles que a dominarem, mesmo que incorram em “externalidades”, entre elas fritar o planeta.

A inevitabilidade já se faz sentir. Google e Microsoft enfiaram recursos de IA generativa em seus aplicativos de produtividade. Da noite para o dia, milhões de pessoas e empresas que dependem do Microsoft 365 (antigo Office) e Google Workspace ganharam assistentes de IA que não pediram e que vieram, é claro, com um aumento considerável no preço das assinaturas a tiracolo.

A Samsung desistiu de melhorar seus celulares — até piorou um pouco o Galaxy S25 Ultra — para dedicar seus esforços a recursos de IA no mínimo questionáveis como chamarizes, numa tentativa ousada de convencer as pessoas a trocarem de aparelho.

Do outro lado do duopólio, a Apple, que se recusava a dizer “IA” e chamava IA de “machine learning” até o ano 1 AC (antes do ChatGPT), abraçou a IA, inventou um trocadilho infame para se referir à sua (“Apple Intelligence”) e decidiu ativá-la por padrão no iOS 18.3.

É a mesma IA que, até antes dessa atualização, inventava notícias ao “resumir“ notificações de apps de jornais. A solução da Apple? Remover apps de notícias do resumo da IA. Digo, da “Apple Intelligence”. Ela te transformar em um trambiqueiro egoísta, na visão da Apple, isso continua valendo.

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Sendo inevitável, faz sentido opor-se ao uso da IA? Ou melhor: é possível deixar de usar recursos baseados em “IA”, votar com a carteira?

Os mais explícitos, talvez sim, talvez até desejável pois bregas e/ou quase inúteis. A Anthropic, startup de IA bancada por bilhões de dólares da Amazon e do Google, concorda.

O problema é que, em um contexto mais amplo, todos já usamos “IA” em larga medida. Da pesquisa por imagens no Apple/Google Fotos a rotinas mais inocentes, como o corretor ortográfico do celular ou traduções automáticas, tudo se baseia em conceitos e técnicas que, a depender da definição (se mais ampla), cabem debaixo do guarda-chuva da inteligência artificial. E com benefícios tangíveis, ou mais justificáveis, do que apagar gente feia do fundo de uma foto.

E é essa percepção que me leva a um cansaço que precede o dilema, porque inócuo. A famigerada garrafinha d’água de 500 ml que o ChatGPT consome é o novo “desligue a luz para economizar energia”, o “tome banho de 30 segundos para não faltar água no mundo”, no que quero dizer que tanto faz usar ou não o ChatGPT porque:

  1. O estrago já está feito e não serão uma ou um milhão de pessoas tentando ignorar as IAs (ou a parte evidente delas) que mudará o curso estabelecido pela indústria; e
  2. Ainda que por algum milagre aconteça um boicote significativo da IA, a infraestrutura já construída e a que está saindo do papel não serão derrubadas por falta de uso. Em vez disso, a indústria vai inventar novos usos porque não existe capacidade ociosa e, mais importante, ninguém está investindo uma quantia obscena de dinheiro só para ver se vai dar em alguma coisa.

Uma coisa é um punhado de startups vendendo promessas vazias bancadas por picaretas da laia do Marc Andreessen, como vimos no surto do NFT. Outra é as maiores empresas e fundos de investimento do planeta despejando centenas de bilhões de dólares (literalmente) em uma tecnologia que creem ser revolucionária.

Quando se chega a esse estágio, só há dois caminhos possíveis: um retorno altíssimo acompanhado de uma verdadeira revolução, ou uma quebradeira generalizada, doa a quem doer. Você deve imaginar o meu palpite de qual desfecho veremos.

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É meio frustrante quando as respostas a um dilema ecoam os abrangentes e a essa altura cansados “é o capitalismo” ou “são problemas sistêmicos, não podemos fazer nada”. Mesmo que seja o caso. Por isso, quero terminar dando um pouco mais de contexto, no âmbito do indivíduo, para ajudar a expiar a culpa caso você queira usar o ChatGPT para qualquer tarefa modorrenta que te peçam no trabalho ou, sejamos realistas, experimentar as ferramentas disponíveis — numa dessas, vai que você acha algo útil?3

Sabe as videochamadas, o Zoom e o FaceTime que salvaram alguns fiapos de sanidade na pandemia e que normalizaram a videochamada? É das atividades digitais que mais consomem energia. E não precisa ser assim, se estivermos dispostos a desligar o vídeo e ficar só com o áudio. Como a gente fazia antes da pandemia. Esse gesto simples economiza 96% das emissões de carbono de uma videochamada4.

Antes de excluir o app do Zoom do seu celular, considere que, ainda que você não desligue o vídeo por qualquer motivo, uma videochamada é, por óbvio, muito mais econômica e eficiente do ponto de vista energético do que pegar um avião e depois um Uber ou alugar um carro para conversar cara a cara com alguém do outro lado do país.

Sabe o que mais consome muito mais energia do que centenas, milhares de respostas imbecis e códigos quebrados geradas pelo ChatGPT? Streaming de vídeo. Vamos todos cancelar a Netflix e o YouTube e voltar à internet dos anos 1990, baseada em texto puro, e às locadoras de DVDs? Pois é, eu e a Blockbuster também achamos que não.

Da minha parte, creio que direcionar a (nossa!) energia aos atores, instâncias e problemas com mais chances de retornos maiores (sistêmicos!) é um caminho mais promissor. Como? Sei lá. Deixo essa pergunta (e o meu apoio) para ativistas, cientistas, políticos comprometidos com o meio-ambiente e quem mais estiver capacitado para ajudar. Eu sou só um cara qualquer escrevendo em um blog que quase ninguém lê.

Vamos lutar contra a instalação de centros de dados em locais que já sofrem com a estiagem, ou obrigar as big techs a serem mais transparentes em seus relatórios ambientais e eficientes no reuso da água e outras técnicas de mitigação do uso de recursos.

Independentemente do que achemos das IAs no geral, das generativas em particular; se bregas, antiéticas, super legais ou revolucionárias, só sei que não é torcendo o nariz ou assediando quem as usa que resolveremos o problema. Pelo uso em si, quero dizer. Zoar quem se autoproclama autor de poemas feitos pelo ChatGPT, aí acho que tudo bem.

  1. Essa é uma diferença crucial da IA para outras modas: desta vez, não são só startups questionáveis convencidas de que estão prestes a mudar o mundo. As maiores e mais poderosas empresas do mundo também compraram a ideia.
  2. “AC” de “antes do ChatGPT”, que equivale a 2022 DC, “depois de Cristo”.
  3. Tenho usado o Perplexity Pro (cortesia da Vivo) para algumas respostas rápidas de dúvidas bobas e o GPT-4o via DuckDuckGo para me ajudar com alguns códigos para este Manual. Os resultados têm sido ok no primeiro caso e inconsistentes no segundo.
  4. Que, por coerência, passaria a ser apenas uma chamada.

Fonte