O que cartas de baralho podem nos ensinar sobre experiência do usuário
Como séculos de ajustes tornaram o baralho um ícone de design e funcionalidade.Foto de Erick Mclean no Unsplash.Todo mundo tem um objeto do cotidiano que gostaria de reprojetar ou melhorar. Pode ser um fone de ouvido, um tipo de zíper, a tampa da caixa de leite. Mas tem um artefato em específico que eu já vi artistas e designers recriarem centenas de vezes sem necessariamente tentar “melhorar” sua usabilidade: as cartas de baralho.A impressão que tenho é que o design parece tão adequado que não precisa de outra proposta. Surgem novas leituras estéticas, mas os detalhes do design original que as tornam tão boas de jogar dificilmente são alterados.Adoro olhar mais atentamente para designs considerados “cristalizados”, e então me dediquei a pesquisar um pouco sobre a evolução visual e gráfica dos baralhos.De qual baralho estamos falando?Um baralho é, em tese, qualquer conjunto de cartas ilustradas e numeradas. Mas há um tipo particular que vem à mente da maioria das pessoas: o modelo mais popular ao redor do mundo é o padrão francês.É comum olhar para objetos cotidianos bem resolvidos em termos de design e assumir que eles surgiram assim — especialmente quando uma mesma versão é popular há muitos anos.No caso do baralho, o design mais difundido hoje é o mesmo desde os anos 1880; mas até chegar nesse ponto foram séculos e séculos de evolução.Cartas são objetos pequenos, mas eu diria que essas contêm uma alta densidade de cuidado com o visual e a usabilidade, por mais que o termo ainda não fosse utilizado na época da sua concepção.Quanto tempo demora pra um design ficar bom a ponto de se “cristalizar”?Acredita-se que os primeiros conjuntos de cartas para jogos surgiram na China no século X e que as versões mais antigas conhecidas eram utilizadas para representar dinheiro — daí os números e alguns dos símbolos utilizados, como o naipe de ouros (originalmente “moedas”). Nessa época eles eram impressos a partir da técnica de xilogravura.Os baralhos foram se popularizando e se espalhando para além da Ásia, e no século XIV foram introduzidos na Europa por mercadores árabes. Lá foram surgindo, ao longo dos anos, mudanças de design que nos trouxeram até o padrão atual. Elaborei uma breve comparação entre o baralho europeu mais antigo conhecido, o Flemish Hunting Deck (que hoje está no Met Museum) e o padrão atual.Rei de Horns, do baralho Flemish Hunting Deck vs. o rei de espadas do baralho que tem na minha casa.No final do século XV os símbolos dos naipes foram muito simplificados, presumidamente para cortar custos e facilitar a produção em larga escala. Somado aos avanços tecnológicos no campo gráfico na Europa no mesmo período, esse fator contribuiu para o barateamento dos baralhos.Os numerais nas extremidades das cartas foram adicionados para permitir que os jogadores conseguissem visualizar todas elas enquanto as seguravam com uma única mão em formato de leque. Eles foram introduzidos pela primeira vez em 1693 e popularizados a partir do século XVIII.A simetria nas cartas referente à nobreza foi criada para que o jogador possa identificar a carta rapidamente mesmo que esteja de cabeça pra baixo e também para que jogadores em lados opostos de uma mesa possam ter a mesma visibilidade das cartas dispostas. Essa característica foi inventada em 1745.Apesar de o baralho mais antigo ser arredondado, muitos dos conjuntos de cartas posteriores eram retangulares, com as extremidades pontudas. As pontas retangulares costumam estragar mais fácil e poderiam ser utilizadas para trapaça ou revelar o valor de uma carta acidentalmente. Pontas arredondadas acabaram por se tornar o padrão.O verso das cartas é ornamentado com padrões complexos para tornar mais difícil a identificação das cartas, seja através da iluminação ou de pequenas marcações no verso, como arranhões, que poderiam ser utilizados para trapacear. Essa característica se tornou preferência a partir da metade do século XIX. Hoje em dia, além disso, algumas cartas de baralho são confeccionadas com papel empastado (quando várias folhas são coladas juntas para formar um substrato mais resistente) com cola preta, para aumentar a densidade das cartas e impedir que a passagem de luz revele o valor de alguma delas.Todas essas mudanças no padrão de design dependeram do contexto tecnológico em que estavam inseridas e de diversas pessoas envolvidas na sua produção; nenhuma das quais era conhecida como “designer”, já que esse rótulo profissional só surgiu muito depois. Mas todas essas mudanças de design têm algo em comum: elas surgiram a partir da observação do uso das cartas e da identificação de possíveis problemas ou dificuldades encontradas pelos jogadores, como o desgaste do baralho e as diversas possibilidades de trapaça.Hoje em dia lidamos com tantas mudanças de design em interfaces do nosso dia a dia (redes sociais, principalmente; mas também em vários serviços públicos, por exemplo) que parecem ter sido tomadas unilateralmente pelos designers — redesigns que ninguém pe
Como séculos de ajustes tornaram o baralho um ícone de design e funcionalidade.
Todo mundo tem um objeto do cotidiano que gostaria de reprojetar ou melhorar. Pode ser um fone de ouvido, um tipo de zíper, a tampa da caixa de leite. Mas tem um artefato em específico que eu já vi artistas e designers recriarem centenas de vezes sem necessariamente tentar “melhorar” sua usabilidade: as cartas de baralho.
A impressão que tenho é que o design parece tão adequado que não precisa de outra proposta. Surgem novas leituras estéticas, mas os detalhes do design original que as tornam tão boas de jogar dificilmente são alterados.
Adoro olhar mais atentamente para designs considerados “cristalizados”, e então me dediquei a pesquisar um pouco sobre a evolução visual e gráfica dos baralhos.
De qual baralho estamos falando?
Um baralho é, em tese, qualquer conjunto de cartas ilustradas e numeradas. Mas há um tipo particular que vem à mente da maioria das pessoas: o modelo mais popular ao redor do mundo é o padrão francês.
É comum olhar para objetos cotidianos bem resolvidos em termos de design e assumir que eles surgiram assim — especialmente quando uma mesma versão é popular há muitos anos.
No caso do baralho, o design mais difundido hoje é o mesmo desde os anos 1880; mas até chegar nesse ponto foram séculos e séculos de evolução.
Cartas são objetos pequenos, mas eu diria que essas contêm uma alta densidade de cuidado com o visual e a usabilidade, por mais que o termo ainda não fosse utilizado na época da sua concepção.
Quanto tempo demora pra um design ficar bom a ponto de se “cristalizar”?
Acredita-se que os primeiros conjuntos de cartas para jogos surgiram na China no século X e que as versões mais antigas conhecidas eram utilizadas para representar dinheiro — daí os números e alguns dos símbolos utilizados, como o naipe de ouros (originalmente “moedas”). Nessa época eles eram impressos a partir da técnica de xilogravura.
Os baralhos foram se popularizando e se espalhando para além da Ásia, e no século XIV foram introduzidos na Europa por mercadores árabes. Lá foram surgindo, ao longo dos anos, mudanças de design que nos trouxeram até o padrão atual. Elaborei uma breve comparação entre o baralho europeu mais antigo conhecido, o Flemish Hunting Deck (que hoje está no Met Museum) e o padrão atual.
- No final do século XV os símbolos dos naipes foram muito simplificados, presumidamente para cortar custos e facilitar a produção em larga escala. Somado aos avanços tecnológicos no campo gráfico na Europa no mesmo período, esse fator contribuiu para o barateamento dos baralhos.
- Os numerais nas extremidades das cartas foram adicionados para permitir que os jogadores conseguissem visualizar todas elas enquanto as seguravam com uma única mão em formato de leque. Eles foram introduzidos pela primeira vez em 1693 e popularizados a partir do século XVIII.
- A simetria nas cartas referente à nobreza foi criada para que o jogador possa identificar a carta rapidamente mesmo que esteja de cabeça pra baixo e também para que jogadores em lados opostos de uma mesa possam ter a mesma visibilidade das cartas dispostas. Essa característica foi inventada em 1745.
- Apesar de o baralho mais antigo ser arredondado, muitos dos conjuntos de cartas posteriores eram retangulares, com as extremidades pontudas. As pontas retangulares costumam estragar mais fácil e poderiam ser utilizadas para trapaça ou revelar o valor de uma carta acidentalmente. Pontas arredondadas acabaram por se tornar o padrão.
- O verso das cartas é ornamentado com padrões complexos para tornar mais difícil a identificação das cartas, seja através da iluminação ou de pequenas marcações no verso, como arranhões, que poderiam ser utilizados para trapacear. Essa característica se tornou preferência a partir da metade do século XIX. Hoje em dia, além disso, algumas cartas de baralho são confeccionadas com papel empastado (quando várias folhas são coladas juntas para formar um substrato mais resistente) com cola preta, para aumentar a densidade das cartas e impedir que a passagem de luz revele o valor de alguma delas.
Todas essas mudanças no padrão de design dependeram do contexto tecnológico em que estavam inseridas e de diversas pessoas envolvidas na sua produção; nenhuma das quais era conhecida como “designer”, já que esse rótulo profissional só surgiu muito depois. Mas todas essas mudanças de design têm algo em comum: elas surgiram a partir da observação do uso das cartas e da identificação de possíveis problemas ou dificuldades encontradas pelos jogadores, como o desgaste do baralho e as diversas possibilidades de trapaça.
Hoje em dia lidamos com tantas mudanças de design em interfaces do nosso dia a dia (redes sociais, principalmente; mas também em vários serviços públicos, por exemplo) que parecem ter sido tomadas unilateralmente pelos designers — redesigns que ninguém pediu e ninguém gostou, alguns que acabam sendo revertidos, como aquela vez que inexplicavelmente o Instagram mudou o sentido da rolagem do feed para horizontal — que fiquei feliz de olhar com um pouco mais de curiosidade para um artefato tão antigo e perceber que ao longo da sua história ele recebeu melhorias que realmente partiram das necessidades dos seus usuários, os jogadores.
Coringa: uma adição recente
A carta coringa (ou Joker), foi uma adição relativamente recente ao baralho padrão, criada por Samuel Hart no século XIX. Por conta disso, o design dessa carta é o menos padronizado de todo o baralho. Essa gama de variações faz com que seja um tipo de carta mais colecionável, e a maior coleção do mundo pertence a Tony de Santis, que tem mais de 8 mil cartas coringa diferentes.
Outros formatos
Outros formatos foram explorados, mas não tiveram muito sucesso:
Cartas de baralho redondas existem desde o século XV, e no final do século XIX, foram produzidas por vários fabricantes. Apesar do visual super interessante, esse modelo nunca ganhou popularidade.
Em 2008, os designers Alvaro Guillermo e Meire Vibiano desafiaram o design tradicional das cartas retangulares ao propor um baralho brasileiro.
“O design diferenciado com medidas mais estreitas e o formato mais arredondado facilitam o manuseio das cartas. Jogos como buraco, por exemplo, pedem habilidade do jogador por causa do grande número de cartas nas mãos. Os naipes e os números são maiores e o fundo branco possui uma pequena porcentagem de cor que associada ao verniz fosco e ao acabamento plastificado do papel impedem o reflexo da luz, facilitando a leitura.”, conta Guillermo.
O projeto foi desenvolvido em comemoração aos 200 anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil, e por isso os naipes foram redesenhados para representar coroas.
Apesar de saber que esses formatos experimentais não alcançaram popularidade expressiva, eu admiro a tentativa de redesenhar artefatos tão clássicos como as cartas de baralho, e adoraria ver mais projetos assim. Ou será que alguma coisa é tão boa que não pode melhorar?
Referências
- Baralho Brasileiro: um brinde diferenciado — Mais Grupo
- Circular playing cards are a style that never caught on — Chronicle
- French-suited playing cards — Wikipédia
- The Card Maker Who Brought the Joker Into the World — David Doochin
- The Cloisters Playing Cards — The Met Museum
O que cartas de baralho podem nos ensinar sobre experiência do usuário was originally published in UX Collective