Das Marias do séc. XX às Marias do séc. XXI

Estamos a viver uma nova era de retrocessos. Às Marias deste século cumpre dar continuidade à revolta contra todas as formas de opressão que continuam por vencer.

Fev 7, 2025 - 02:29
 0
Das Marias do séc. XX às Marias do séc. XXI

No prefácio a uma antiga edição das “Novas Cartas Portuguesas” das famosas Três Marias, escreve uma quarta Maria não menos relevante: Maria de Lurdes Pintasilgo, uma figura que dispensa apresentações e que se destacou por ter sido a primeira e única mulher a ocupar o cargo de primeira-ministra em Portugal. Há uma citação que Pintasilgo destaca em especial das Cartas Portuguesas: “Se a mulher se revolta contra o homem nada fica intacto.”

E, com efeito, o impacto da publicação dessa obra em 1972 fez com que nada ficasse intacto. Nesta semana em que perdemos a última Maria, com o falecimento de Maria Teresa Horta, não faltam homenagens merecidas a evocar o seu papel de poeta, jornalista, ativista, política e mulher que abalou a instituição bafienta e opressiva do velho regime, enfrentou tribunais e abriu janelas que deixaram entrar a liberdade.

Curiosamente, na mesma década em que foi publicada a obra “Novas Cartas Portuguesas”, uma grande polémica rebentou em torno de outra Maria, retratada no filme de António de Macedo, “As Horas de Maria”. Ao pôr em causa a virgindade da Virgem Maria, o filme foi alvo da ira da Igreja Católica e, reza a lenda, na estreia do filme em 1979, já após o 25 de Abril, irromperam manifestações de repúdio que consideravam a obra blasfema, ao ponto de agredirem e insultarem espetadores.

Lembro-me dos relatos do António de Macedo, que tive o prazer de conhecer, desse período bizarro e que provavam, de modo inequívoco, que não basta derrubar uma ditadura para instaurar uma mentalidade progressista da noite para o dia. Muito mal já tinha sido feito ao país durante décadas de repressão e miséria, décadas de submissão a uma cartilha conservadora.

Hoje, muitos de nós já não sabemos o que é viver em ditadura. Aprendemos a tomar grande parte das grandes conquistas sociais e laborais como garantidas. Lemos as obras e os feitos de figuras como Maria Teresa Horta, bem como os combates do seu tempo, mas interrogo-me se estimamos o suficiente esse legado.

Será que compreendemos o que significava ser mulher num tempo adverso à condição feminina? Será que compreendemos que as lutas das Marias desse século exigiam coragem e firmeza num ambiente de enorme intimidação?

É inegável que estamos a viver uma nova era de retrocessos, com o risco de perdermos décadas da luta das mulheres. Às Marias deste século cumpre dar continuidade à revolta contra todas as formas de opressão que continuam por vencer.