Boas ideias no CEP errado

Portuguesa é a SAF com melhores ideias no Brasil atualmente, porém enfrentará nos próximos anos um cenário bastante complicado O post Boas ideias no CEP errado apareceu primeiro em MKT Esportivo.

Jan 23, 2025 - 11:31
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Boas ideias no CEP errado

Com bastante frequência, recebo comentário de gente que lê meus artigos por aqui me perguntando sobre minha experiência acadêmica nos Estados Unidos. Dentre as mais diversas perguntas que recebo nesse sentido, a que mais me fazem é sobre o tema da minha dissertação, então já pensei algumas vezes em trazer essa conversa para cá. Ainda assim, por mais que minha dissertação tenha total relação com o cenário esportivo brasileiro, nunca encontrei uma conexão que fizesse sentido, então esse texto sempre ficou na gaveta. Até hoje. Tenho acompanhado com curiosidade o desenvolvimento de algumas SAFs no Brasil – cabe dizer que não conheço ninguém que desgoste tanto da ideia das SAFs quanto eu –, e uma delas se encaixa quase que perfeitamente na minha principal área de estudo. O artigo de hoje, então, é uma breve análise do projeto da Portuguesa.

Há pouco mais de dez anos, o Facebook se associou a uma série de veículos de comunicação ao redor do mundo para investigar a distribuição de torcedores em alguns países. No Brasil, essa parceria foi firmada com o Globo Esporte e resultou no chamado Mapa de Curtidas, que viralizou na época por se tratar da mais detalhada demonstração da distribuição de torcidas pelo território nacional. Nos Estados Unidos, de forma similar, a parceria foi firmada com o NY Times, e resultou em mapas semelhantes para diferentes ligas americanas. Nesse momento ainda inicial da minha pesquisa, o foco tem sido na análise dos mapas criados para a NBA e a MLB, principais ligas de basquete e beisebol do mundo, respectivamente.

Enquanto no estudo brasileiro a divisão dos torcedores foi feita por cidades, nos estudos americanos os dados foram divididos em condados (counties) e ZIP codes (uma espécie de CEP americano), tornando o detalhamento dos dados ainda mais impressionante. E observando os mapas, a diferença é gritante. Em um resultado já esperado por qualquer pessoa que acompanhe o mínimo de futebol brasileiro e de esportes americanos, é possível observar neles que o futebol brasileiro possui uma concentração muito maior de fãs do que as ligas americanas. De forma bastante resumida, então, minha pesquisa tem como enfoque “colorir” o mapa brasileiro, criando as bases para que times de diferentes regiões consigam ampliar e consolidar suas bases de torcedores em ambientes dominados hoje principalmente por times paulistas e cariocas.

Colocando essa diferença em números, tanto a NBA quanto a MLB possuíam em 2014 (quando os mapas do NY Times foram desenvolvidos) trinta franquias. Em ambas as ligas, vinte e nove dessas franquias estavam localizadas em território americano, com Toronto Raptors e Toronto Blue Jays, franquias canadenses, ficando de fora do escopo dos mapas. Considerando essas vinte e nove franquias restantes em cada uma das ligas, os resultados de distribuição de torcedores por counties e ZIP codes apontam para resultados completamente diferentes do que se observa na realidade brasileira.

Na MLB, praticamente todas as franquias dominavam as torcidas tanto em seu condado quanto em seu ZIP code, com três exceções. Essas exceções, não coincidentemente, se encontram todas em regiões com vizinhos bastante relevantes próximos. O Oakland Athletics, por exemplo, inclusive se encontra de mudança para Las Vegas após décadas sem conseguir consolidar uma torcida significativa tendo o San Francisco Giants sediado em sua vizinhança. As outras duas exceções eram ainda mais inevitáveis: o Chicago White Sox não tinha a maior torcida da região por dividir seu condado com o Chicago Cubs, mas ainda assim dominava seu ZIP code, enquanto o New York Mets via os Yankees, com uma das marcas de maior relevância no esporte mundial, disputarem o mesmo espaço.

Na NBA, de maneira ainda mais impressionante, vinte e sete das vinte e nove franquias dominavam a torcida tanto de seus condados quanto de seus ZIP codes. As únicas exceções eram o Atlanta Hawks, que perdia em seu condado para o Miami Heat (vizinho razoavelmente próximo e, na época, time mais competitivo da liga), e o Clippers, que dividia a mesma arena (e, portanto, o mesmo condado e o mesmo ZIP code) com a que pode ser considerada a maior franquia da história da liga, os Lakers. A conclusão não poderia ser mais clara: com organizações engajadas em suas comunidades e preocupadas com a experiência de seus torcedores, praticamente todas as franquias nas ligas americanas conseguem dominar seus respectivos mercados.

Feita essa longa introdução, um dos grandes incômodos que eu tenho com as SAFs no Brasil é a incapacidade que apresentam de colocar seus torcedores e suas comunidades como prioridade. Praticamente todos os modelos de negócio divulgados por SAFs ao redor do país focam em três pilares para garantir sua lucratividade e competitividade pelas próximas décadas: participação em grandes competições (com consequente aumento nas premiações e cotas de televisão), investimentos em categorias de base (com consequente vendas de atletas) e infraestrutura.

Me choca que mesmo a SAF do Ferroviário (CE), em seu planejamento estratégico, considere participações na Série A, por exemplo. Já apontei isso várias vezes por aqui no passado, e provavelmente devo escrever mais um artigo nos próximos meses focando somente nesse ponto: não existe espaço para todos sob esse modelo, e se essa for a abordagem de todas as equipes do país, a imensa maioria delas fracassará!

Existe, no entanto, um modelo em que dezenas ou centenas de clubes brasileiros sejam viáveis, e esse é um modelo em que o principal pilar seja o relacionamento com os torcedores e comunidades locais. É um modelo em que os clubes passem a se preocupar mais com a experiência de seus torcedores do que com os resultados dentro de campo. E isso não significa, por óbvio, abdicar dos resultados em campo, uma vez que esse continua sendo o objetivo geral de uma organização esportiva. Pelo contrário, é um modelo que entende que os resultados em campo são uma consequência natural de um clube saudável e viável fora de campo, de organizações que sejam pilares de suas respectivas comunidades. É esse o modelo americano e, mais importante, é esse o único modelo capaz de garantir que as SAFs brasileiras (todas elas, e não apenas um punhado) sejam saudáveis e rentáveis no longo prazo.

A Portuguesa, em determinada medida, foi a primeira SAF que eu vi realmente estruturar um plano nesse sentido. (Aqui, corro o risco de ser injusto com alguma outra SAF que também apresente esse enfoque e que eu desconheça, mas meu ponto permanece.) Ainda que tenham também um enfoque grande em escalar as divisões do futebol nacional e prevejam uma participação em Série A já em 2029 – o que, particularmente, considero uma bobagem –, as ideias de implementação de um match day bem trabalhado e de um fortalecimento das conexões com a comunidade portuguesa são ótimas ideias que surgem em um cenário ainda pobre de boas ideias.

Foto: Divulgação/ Portuguesa

O único problema, pelo que observo de longe, é que o ambiente provavelmente será bastante inóspito, com oportunidades de crescimento bastante limitadas. Se clubes ao redor de todo o país vão precisar lutar contra o domínio de clubes paulistas e cariocas, a Portuguesa é um dos únicos clubes que não terá a vantagem geográfica a seu favor. Um dos pontos centrais da minha pesquisa no doutorado é justamente como o fator geográfico se transforma em uma vantagem competitiva para clubes menores, e não ter acesso a esse diferencial torna o cenário para a Portuguesa muito mais complicado.

Uma pesquisa de 2008 do Datafolha mostrou a Portuguesa com 0,3% dos torcedores na cidade de São Paulo. Ainda que se trate da maior metrópole da América Latina, é um número baixíssimo de torcedores para sustentar um projeto de futebol relevante, e qualquer tentativa de aumentar sua projeção vai sempre esbarrar em quatro dos maiores clubes da América disputando seu quintal.

Mesmo a tentativa de capitalizar na comunidade portuguesa me parece mais complicada do que parecem supor os diretores da Lusa. Alex Bourgeois, presidente da SAF, chegou a levantar o número de 300 mil associados, o que não parece viável sob qualquer métrica que se use para analisar a comunidade lusitana no Brasil. Mesmo nesse ambiente, se considerarmos uma busca por projeção nacional do clube, o Vasco da Gama também poderia se transformar em um obstáculo para a Portuguesa, o que torna o cenário infértil sob qualquer ótica. Poucas SAFs terão uma concorrência tão complicada quanto a Lusa no país, e boas ideias podem não ser o suficiente para viabilizar um projeto que busque objetivos maiores.

Para concluir meu raciocínio: há algumas semanas, como faz todo ano, a Forbes publicou a lista de organizações esportivas mais valiosas do mundo. Conforme esperado, franquias americanas dominaram a lista, com o Real Madrid aparecendo apenas na décima segunda colocação. As franquias mais valiosas, como sempre, se encontram na California e no nordeste americano, em cidades como Nova Iorque, Boston e Filadélfia. Ainda assim, as ligas americanas não vão por um caminho de acrescentar franquias nessas regiões, com casos recentes de franquias inclusive deixando esses locais – como aconteceu com as franquias de Oakland na MLB e na NFL. Com porções do território já dominadas, o crescimento do esporte nos Estados Unidos se dá por uma expansão geográfica, e esse também precisa ser o caminho seguido no Brasil.

Não há nada que a Portuguesa possa fazer nesse sentido, é claro, já que não faz muito sentido se cogitar uma realocação. Ainda assim, permaneço na torcida para que o esporte brasileiro veja equipes das mais distintas regiões apresentando um foco semelhante na geração de boas experiências para torcedores locais, concentrando sua atenção inicial em se tornarem pilares de suas comunidades ao invés de buscar voos mais altos que nem todos podem alçar.

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